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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
01/01/1970 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Califórnia Filmes
Duração do filme
131 minuto(s)

O Passado
Le Passé

Dirigido e roteirizado por Asghar Farhadi. Com: Ali Mosaffa, Bérénice Bejo, Tahar Rahim, Pauline Burlet, Elyes Aguis, Jeanne Jestin, Sabrina Ouazani, Babak Karimi, Aleksandra Klebanska.

Logo nos primeiros momentos de O Passado, novo trabalho escrito e dirigido pelo iraniano Asghar Farhadi, o ex-casal Ahmad (Mosaffa) e Marie (Bejo), que não se via há quatro anos, entra num carro no estacionamento do aeroporto. Após uma breve conversa, Marie dá a ré no automóvel e quase colide num veículo que jamais vemos – e, com isso, o talentosíssimo cineasta já estabelece de maneira econômica e elegante o principal tema da narrativa, que se concentrará justamente em pessoas que, sempre parecendo olhar para trás, para o passado, entram em choques constantes em função do que já viveram e que os impede de seguir adiante.

Responsável pelas obras-primas À Procura de Elly e A Separação, Farhadi volta a investir, aqui, naquela que é sua maior especialidade: a criação de um universo realista e povoado por indivíduos complexos e normalmente de boa índole que, no entanto, frequentemente se desentendem e se agridem graças a dilemas cotidianos com os quais qualquer adulto pode facilmente se identificar. Aqui, por exemplo, conhecemos Ahmad, que, fora da França há quatro anos desde que se separou de Marie, retorna ao país para assinar o divórcio e rever as filhas que a ex-esposa teve em um casamento anterior e que ele criou como suas durante os anos em que pôde chamá-las de enteadas. Ao chegar à casa da ex, porém, ele descobre que agora ela mora com o namorado, Samir (Rahim), e com o filho pequeno deste, Fouad (Aguis). Para complicar ainda mais a situação, a esposa de Samir encontra-se em coma há oito meses depois de uma tentativa de suicídio – e Lucie (Burlet), filha mais velha de Marie, não aceita a presença do novo parceiro da mãe em sua casa.

Pintando aquele mosaico de personalidades contrastantes de forma sensível, Farhadi aos poucos vai construindo uma dinâmica fluida e multifacetada que permite que o espectador compreenda os pontos vistas de todos os envolvidos, tornando nossa relação com os personagens ainda mais fascinante por evitar maniqueísmos baratos que nos levem a “torcer” por um ou outro. É perfeitamente possível, por exemplo, entender o desconforto que Ahmad e Samir provocam um no outro – e mesmo que o primeiro se mostre um homem gentil, razoável e com fala tranquila, é claro que sua presença desperta desconfiança e ressentimentos no novo namorado de Marie (aliás, podemos dizer que justamente por ser tão amável Ahmad torna-se uma “ameaça” maior). Por outro lado, ainda que Samir pareça amar Marie, sua obsessão com o estado da esposa em coma é natural e mesmo admirável, sendo também compreensível que sua nova companheira ressinta isto.

Constantemente fechados em si mesmos em função de segredos, inseguranças e mágoas, os personagens conseguem ao mesmo tempo conversar sobre tudo e nada: se por um lado se abrem pontualmente, por outro dão as costas uns aos outros antes de resolverem as questões discutidas – e esta dificuldade de comunicação é ressaltada pelo diretor através de uma eficiente rima visual: momentos recorrentes nos quais vemos aqueles indivíduos através de vidros que silenciam suas vozes. A ideia, aliás, é representada também no breve instante no qual Marie faz uma indagação a Ahmad e é respondida por Samir, que incorretamente presume ter sido o alvo da pergunta, e no plano que traz a moça colocando sua mão sobre a do namorado, que, após mudar a marcha do carro, move o braço e se afasta da garota.

Esta abordagem sutil da narrativa, diga-se de passagem, é uma das maiores virtudes de Asghar Farhadi – e observem, por exemplo, como o design de produção de O Passado estabelece conceitos instigantes simplesmente através da casa que hospeda a maior parte da trama: encontrando-se em reforma (o que é perfeito, já que Marie e Samir querem reconstruir suas vidas), o imóvel traz uma série de aposentos abarrotados de objetos, sugerindo toda a bagagem que permanece no caminho daqueles indivíduos e incluindo um anexo que guarda os pertences de Ahmad (e, consequentemente, sua presença na mente de Marie). Da mesma maneira, é perfeito que logo Ahmad suje o ombro na tinta fresca da casa, manchando a tentativa de reconstrução com sua presença e sendo também manchado por esta. E se a pintura provoca forte alergia em Samir, levando-o às lágrimas constantes, isto se mostra igualmente apropriado, já que sua tentativa de levar a vida adiante reforça seu sentimento de culpa em relação à esposa comatosa, ao passo que o fato de Farhadi incluir planos similares que trazem Marie olhando para os dois homens de sua vida em instantes diferentes enquanto estes guiam o carro (e, consequentemente, sua trajetória) é algo que aponta para a divisão da moça diante de ambos.

Adotando uma abordagem que investe em planos longos que acompanham os personagens em quadros estáveis e com uma câmera que se movimenta discretamente (algo bastante diferente da câmera na mão de A Separação, por exemplo), Farhadi é especialmente talentoso ao conceber sua mise-en-scène, que traz detalhes que ressaltam o realismo do universo – como na cena em que Samir conversa com um médico que, despedindo-se, entra numa sala e dá beijos de cumprimentos em alguém que se encontra lá dentro e que jamais vemos (um capricho de composição sonora que salienta o cotidiano ocupado do hospital). Além disso, o diretor opta por descartar o uso de temas musicais, empregando apenas sons diegéticos para compor o design sônico do longa – e percebam como, em certo momento, ele faz uma ponte sonora para criar tensão ao fim de uma cena ao antecipar o ruído de um metrô que surgirá segundos depois.

Enriquecido por um elenco impecável que faz jus à complexidade dos personagens, O Passado é um filme povoado por pessoas que tentam encontrar sentido onde não há nenhum: por que Céline bebeu detergente diante de uma funcionária em vez de na frente do marido? Por que não se envenenou em casa? Ela sabia o que ocorria na vida do companheiro? E mais relevante: as respostas a estas questões mudariam alguma coisa? O fato é que, cada um ao seu próprio modo, os habitantes deste universo são hábeis em se prender ao passado: Samir é atormentado pelo fantasma de uma mulher que permanece semiviva; Lucie se apega a um pai que não é seu; Marie parece apostar na vida que carrega no ventre como uma forma de se obrigar a seguir adiante, mas isto não a impede de fumar compulsivamente, como se tentasse envenenar aquele embrião de futuro; e Ahmad e sua bagagem (literal e metaforicamente) rompida parecem incapazes de deixar a velha casa na qual moraram por tantos anos.

Esta ambiguidade de sentimentos é tocante, rica e trágica ao seu próprio modo – e as possíveis resoluções destes dilemas, quando (e se) encontradas, são frágeis como os indivíduos que as tomam. De certo modo, é como se Farhadi lamentasse as âncoras que prendem seus personagens ao passado, mas compreendesse que, de certa forma, este é mais reconfortante do que a incerteza do futuro.

E quando uma lágrima solitária desce pelo olho esquerdo da figura que melhor simboliza o fantasma assustador do passado, o filme arremata sua discussão existencial com uma ambiguidade final que pode significar um mundo de coisas ou absolutamente coisa alguma, já que o que importará será apenas a imagem derradeira do punho cerrado do passado em torno da mão trêmula do presente.

08 de Maio de 2014

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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