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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
17/04/2009 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
124 minuto(s)

Sinédoque, Nova York
Synecdoche, New York

Dirigido por Charlie Kaufman. Com: Philip Seymour Hoffman, Samantha Morton, Catherine Keener, Sadie Goldstein, Tom Noonan, Michelle Williams, Hope Davis, Emily Watson, Dianne Wiest, Jennifer Jason Leigh.

Em maior ou menor grau, todos os filmes roteirizados por Charlie Kaufman giram em torno dos processos através dos quais a mente humana lida com o amor, a morte, a dor e o sofrimento: em alguns casos, esta jornada é literal (Quero Ser John Malkovich, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças); em outras, mais sutil (Adaptação, Confissões de uma Mente Perigosa, Natureza Quase Humana), mas a exploração de nossa psique está sempre lá. Assim, Sinédoque, New York, que também marca a estréia de Kaufman na direção, é um progresso apenas natural desta sua obsessão – e, possivelmente, também seu estudo mais complexo e angustiante, já que consiste em uma viagem através de seus pesadelos repletos de neurose e pessimismo. Ainda assim, o brilhante roteirista não hesita em explorar também a graça inerente à fantasia louca de um pessimista (lembrem-se de Woody Allen), construindo uma obra que finalmente se completa tematicamente apenas pelo fato de ter sido dirigida por Kaufman, independentemente dos méritos ou deméritos desta direção – algo que discutirei com mais calma em alguns momentos.


Iniciando-se com uma cantiga cujos versos pavorosamente tristes se tornam ainda mais terríveis (e, paradoxalmente, divertidos) por serem apresentados na voz de uma criança, Sinédoque, New York nos introduz ao seu protagonista, o escritor e diretor teatral Caden Cotard (Hoffman), quando este acorda já infeliz e questionando o que há de errado consigo – e ainda que ele esteja se referindo à sua saúde, a pergunta se aplica também, como veremos posteriormente, ao seu estado de espírito. Hipocondríaco e naturalmente propenso a enxergar o lado ruim da vida, ele é o tipo de pessoa que, ao ler o nome de Harold Pinter numa manchete, imediatamente supõe se tratar de um obituário, levando alguns segundos para perceber que a notícia gira em torno do Nobel recebido pelo dramaturgo (e não é coincidência que ambos tenham a mesma profissão; Cotard parece estar sempre prevendo a própria morte).

Até aí, o roteiro de Kaufman se mantém razoavelmente contido e ancorado no “mundo real”: sim, há uma figura envelhecida observando o protagonista à distância e as idas de Cotard ao hospital estranhamente decadente (observem as paredes amareladas e sujas e o consultório desarrumado) servem de palco para conversas incômodas com médicos que parecem não dar a mínima para o ansioso paciente – mas, ainda assim, nada que nos leve à suposição de estarmos testemunhando algo fora do comum. E é então que acompanhamos Hazel (Morton), a bilheteira do teatro de Caden, enquanto esta visita um apartamento que pretende alugar e constatamos que ninguém parece se importar com o fato de o imóvel estar em chamas – uma representação perfeita de tantos lares que, habitados por famílias ou indivíduos emocional e/ou psicologicamente instáveis, parecem sempre prestes a entrar em erupção. Cena-chave do filme, é esta visita de Hazel que finalmente telegrafa ao espectador a abordagem narrativa de Charlie Kaufman: estamos vendo o filme através da percepção emocional e psicológica de Caden, não como uma platéia externa às suas neuroses. Assim, quando vemos uma representação caricatural do dramaturgo em um desenho infantil na televisão, estamos testemunhando uma de suas inúmeras projeções e fantasias de auto-destruição, não um programa “real”. Como John Cusack em Quero Ser John Malkovich, ao pagarmos a entrada do cinema fomos também admitidos na mente do protagonista.

Vivendo em função de suas relações com as mulheres que o cercam ou o abandonam, Caden é inicialmente casado com a pintora Adele (Keener, espécie de atriz-fetiche de Kaufman), uma artista deprimida que sempre espera ser desapontada por todos. Exausta de sua vida ao lado do marido, ela aproveita uma exposição de seus minúsculos quadros em Berlim para se libertar, levando consigo a filha Olive, de apenas quatro anos – e, a partir daí, Cotard usará o diário deixado pela criança para projetar, em suas páginas, todas as suas frustrações e terrores como pai ao longo dos anos. Depois de uma breve tentativa frustrada de se relacionar com Hazel – que, justamente por não se consumar, transforma a bilheteira no grande amor idealizado do (anti)herói -, Caden finalmente se envolve com a bela atriz Claire (Williams), com quem tem, claro, mais uma filha (ou um “estepe” de Olive, como ele parece pensar). Rivalizando imaginariamente com a tatuadora Maria (Leigh) pela afeição da ex-esposa e da filha, o sujeito busca até mesmo os conselhos da psicóloga Madeleine (Davis), uma figura – claro! – auto-centrada que parece responder as perguntas do paciente antes mesmo que este termine de formulá-las, tamanha sua necessidade de falar e expor o próprio “brilhantismo”. Assim, não é à toa que, como contraste, Hazel tenha uma família composta apenas por homens e que o único outro personagem do sexo masculino a ganhar destaque ao longo da projeção seja o ator Sammy (Noonan) – e, mesmo assim, porque este interpreta justamente o alter-ego de Caden, que, portanto, só admite a existência de um único homem em sua história/vida: ele mesmo.

Sem jamais tentar encarnar ostensivamente o humor (triste, mas divertido) inerente ao sofrimento de seu personagem, Philip Seymour Hoffman oferece mais um desempenho absolutamente brilhante ao retratar o sujeito com uma voz baixa e contida: sempre triste e investigando possíveis sintomas de uma doença fatal, ele parece já ter envelhecido sem jamais ter vivido de fato. Confortavelmente concentrado em sua própria e eterna angústia, ele não dedica muita atenção às mulheres que alega amar – e quando Kaufman retrata o personagem se assustando ao perceber pela primeira vez uma tatuagem gigantesca nas costas de sua esposa, está dizendo, na realidade, que não há diferença entre o grande e o pequeno no que diz respeito ao egoísmo de Caden: notar a tatuagem ou um novo corte de cabelo da companheira é algo que jamais ocorre àquele homem tão centrado em si mesmo. Conduzindo sua vida através da antecipação da própria morte, Cotard é, portanto, um morto-vivo (e Kaufman, com seu senso de humor sutil, não decidiu batizar o personagem com este nome por acaso; pesquisem a Síndrome de Cotard na Wikipedia e terão uma surpresa) – e, quando sua psicóloga pergunta por que ele “se mataria”, ele imediatamente sofre um ato falho auditivo (compartilhado com o espectador) ao entender a indagação como sendo “por que ele se matou”.

Da mesma maneira, a brusca passagem do tempo ao longo da narrativa é algo que busca explorar justamente o conceito de que, para Caden, a vida transcorre sem ser de fato experimentada; imerso em sua angústia, ele mal percebe a passagem dos anos, desperdiçando sua existência ao gastá-la com a auto-comiseração e ao antecipar doenças e morte. Curiosamente, o efeito contrário ocorre no que diz respeito a Hazel: ao longo dos anos, o protagonista escuta sempre a mesmíssima mensagem na secretária eletrônica da garota – como se esta tivesse ficado congelada na juventude e, portanto, na forma idealizada por Cotard no passado. O tempo, aliás, é um dos grandes inimigos do dramaturgo (como não poderia deixar de ser) e, assim, quando certa personagem diz “Eu já fui bebê”, estas palavras vêm cercadas de um profundo sentimento de perda e arrependimento, como se envelhecer tivesse sido uma “decisão” – e incorreta.

Intrigante, também, é a forma com que Kaufman retrata a falta de comunicação entre Caden e as demais pessoas: em certo momento, por exemplo, ele recebe um fax da ex-esposa acerca da filha e as únicas palavras inteligíveis são aquelas sobre Olive, já que, com exceção do que diz respeito à função de ambos como pais, eles já não têm nada mais a dizer um para o outro. Aliás, a relação de Cotard com seus próprios pais é vista de forma distanciada, embora a morte de ambos o afete profundamente, já que, sejamos honestos, o momento em que perdemos aqueles que nos conceberam é o instante preciso no qual inevitavelmente somos obrigados a constatar nossa finitude – e, assim, é claro que um homem como Caden imagina a partida do pai como o pior dos pesadelos, ocorrendo de forma súbita, envolvendo uma doença terrível e dolorosa e despertando arrependimentos de última hora e confissões de fracasso como indivíduo.

E é neste aspecto que Charlie Kaufman mais uma vez comprova seu absurdo talento: embora nossa eterna busca pelo “sentido da vida” tenha originado milhares de obras na Literatura, no Teatro, na Música e no Cinema, o roteirista adota uma estrutura narrativa ímpar e mais do que apropriada à sua função como contador de histórias para investigar a questão: premiado com uma verba inesgotável para criar o espetáculo que desejar, Caden resolve conceber um simulacro de seu mundo em um galpão, contratando dezenas (talvez centenas) de atores que, todos os dias, recebem instruções específicas sobre como deverão interagir com os demais intérpretes. Uma espécie de performance da Vida, a montagem de Caden o transforma, na prática, num Deus de seu próprio universo, permitindo que ele explore a própria psique enquanto busca encontrar, através da experimentação constante, o grande Significado de Tudo (Douglas Adams diria “42”; Kaufman provavelmente responderia “Caos e Desespero”). Com isso, o título do filme se justifica ao transformar Caden e suas angústias num símbolo da Humanidade e a própria Humanidade, em suas contradições e seus esforços de compreender o Universo, num resumo da jornada do próprio Caden.

Assim, Sinédoque, New York gradualmente se transforma num exercício narrativo fascinante, construindo uma estrutura complexa que revela novas e surpreendentes camadas sob aquelas que já conhecíamos – e logo Caden constrói um galpão dentro do galpão a fim de representar o simulacro do simulacro (que, claro, ganha seu próprio mini-simulacro). Esta viagem interna se torna tão intrincada que, em certo instante, acompanhamos um enterro que, minutos depois, é representado no espetáculo de Caden apenas para, mais adiante, ser revisto como uma montagem teatral da montagem teatral – e, neste momento, os atores que interpretam outros atores são ladeados por uma tela na qual mais pessoas são projetadas, completando um círculo enlouquecedor de inúmeras representações dramáticas numa ficção da ficção da ficção. (É preciso dizer, aliás, que o design de produção de Mark Friedberg é absolutamente espetacular.) E é neste ponto, diga-se de passagem, que compreendemos a inteligência de Kaufman ao retratar Adele como uma pintora que cria retratos minúsculos que exigem lentes de aumento para serem apreciados, já que, de certa forma, é exatamente isso que Caden faz com sua megalomaníaca produção, jogando luz sobre cada um de nós ao compreender que, por mais que sejamos meros figurantes no que diz respeito à Humanidade, somos, claro, todos protagonistas de nossas próprias vidas.

Sempre estimulante do ponto de vista intelectual e exaustivo como exercício Humanista, Sinédoque, New York poderia até ter se apresentado como um espetáculo visual mais estimulante caso tivesse sido dirigido por figuras como Spike Jonze ou (especialmente) Michel Gondry, colaboradores habituais de Kaufman, mas a verdade é que, tematicamente, o filme só se completa por ter sido comandado pelo roteirista - pois da mesma forma com que Caden contrata Sammy para interpretá-lo (e, no processo, ajudá-lo a descobrir quem é na verdade) e posteriormente escala um outro ator para encarnar Sammy (ator este que, então, interpretará Sammy enquanto este interpreta Caden), a verdade é que, em última análise, o próprio Caden Cotard nada mais é do que uma projeção de Charlie Kaufman.

E o simples fato deste ter dirigido o filme é o bastante para que o círculo final se feche e complete a estrutura elegante, complexa e estimulante concebida por um dos roteiristas mais fascinantes que Hollywood já produziu.

18 de Abril de 2009

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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