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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
26/01/2007 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
147 minuto(s)

Perfume: A História de um Assassino
Perfume: The Story of a Murderer

Dirigido por Tom Tykwer. Com: Ben Whishaw, Dustin Hoffman, Alan Rickman, Karoline Herfurth, Rachel Hurd-Wood, Ramón Pujol, Corinna Harfouch e a voz de John Hurt.

Perfume: A História de um Assassino é um filme que se concentra basicamente em um dos poucos temas que o Cinema, por sua própria natureza essencialmente visual, enfrenta imensas dificuldades em abordar: o sentido do olfato. Através da imagem, um cineasta relativamente talentoso pode evocar, no espectador, sensações relativas ao sabor (pense no banquete à frente do Homem Pálido de O Labirinto do Fauno) e ao tato (como as carícias feitas por Hugh Jackman em sua esposa, em A Fonte da Vida), mas como retratar o cheiro de alguma coisa? Tentativas desajeitadas ou claramente  irreverentes foram feitas no passado, como em Polyester, de John Waters, em cujas exibições eram distribuídas pequenas cartelas numeradas que o público tinha que raspar a fim de liberar determinados odores em momentos específicos da projeção (o chamado “Odorama”), mas – por motivos óbvios – isto nunca foi pra frente. Aliás, a tarefa é tão difícil que até mesmo cineastas geniais como Stanley Kubrick e Martin Scorsese chegaram a declarar que o livro homônimo do alemão Patrick Süskind seria “infilmável”.

Pois até os gênios erram. Vinte e dois anos depois de sua publicação, o magnífico romance de Süskind chega às telas graças aos esforços de outro alemão, o diretor Tom Tykwer (Corra, Lola, Corra), que, auxiliado pelo ótimo roteiro que co-escreveu ao lado de Andrew Birkin e Bernd Eichinger, conseguiu contar com brilhantismo a história de Jean-Baptiste Grenouille (Whishaw), um jovem que, desde seu estranho nascimento (pensem em Macunaíma num mercado de peixes do século 18), demonstrou possuir um olfato absurdamente apurado. Determinado a explorar seu talento, ele se torna assistente do famoso mas decadente perfumista Giuseppe Baldini (Hoffman), com quem aprende uma importante lição sobre as 12 essências que qualquer bom perfume deve ter. Então, Jean-Baptiste parte para Grasse, capital mundial da perfumaria, onde aprende a maneira ideal de conservar o cheiro de um “material” atípico: os corpos de jovens e belas mulheres – o objetivo do rapaz é criar um perfume a partir da “essência” de 12 mulheres, o que o leva a se transformar num assassino serial, aterrorizando a cidade.

Sem poder empregar as imaginativas descrições de Süskind (o Cinema deve contar sua história com imagens, não palavras), Tykwer encontra uma alternativa eficiente ao despertar nossa memória olfativa através de claras referências visuais, concentrando-se em planos-detalhe que exploram superfícies, cores e texturas dos elementos de cena. Assim, quando testemunhamos a forma estranhamente sensual com que o cineasta e seu diretor de fotografia (e colaborador habitual) Frank Griebe filmam grãos de café, páginas de livros, potes de maquiagem ou os ombros sardentos de uma jovem atriz, torna-se fácil nos relacionarmos às sensações experimentadas pelo protagonista. Já em outros momentos, a dupla evoca aromas através do simples contraste de cores, como no plano plongé que traz velhos baldes de madeira repletos de rosas intensamente vermelhas. Da mesma forma, é quase possível sentirmos o odor pavoroso do mercado de peixes, já que a falta de higiene da época surge representada por closes repulsivos de carcaças de animais, moscas, poças imundas e barro – um trabalho impecável de design de produção (aliás, os figurinos, realistas em sua decadência, também merecem aplausos).

Mas em um filme que investe tanto tempo numa das formas de arte mais abstratas já inventadas pelo Homem, a Perfurmaria, a reação dos personagens aos inúmeros cheiros apresentados também é um recurso fundamental da narrativa – daí a importância da escalação de atores talentosos como Dustin Hoffman, cuja expressão de verdadeiro êxtase ao experimentar uma das criações de Jean-Baptiste revela tudo que o espectador precisa saber sobre o dom do estranho protagonista. Finalmente, Tom Tykwer não se acanha, também, em criar metáforas visuais para as sensações despertadas pelos perfumes do rapaz – e é inegavelmente poético reconhecer que, de certo modo, sentir determinado aroma é tão prazeroso quanto ser beijado por uma bela mulher e escutar uma declaração de amor em meio a um jardim florido.

Enquanto isso, o jovem ator Ben Whishaw surge como uma promissora revelação ao encarnar um personagem assustadoramente ambíguo: um autêntico selvagem com alma de artista, Jean-Baptiste foi criado sem qualquer tipo de compasso moral com o qual pudesse aprender regras de convivência básicas ou que lhe permitisse reconhecer a natureza repulsiva de um ato de brutalidade – o que, para ele, é algo inato às relações interpessoais, já que sempre foi tratado com violência (escapando duas vezes de uma morte cruel ainda no dia de seu nascimento). Assim, quando mata pela primeira vez, Jean-Baptiste mais parece uma criança que, ao acariciar com força excessiva um filhote de passarinho, surpreende-se ao perceber que este não pode mais voar ou cantar. Isto, aliás, permite que o espectador simpatize com o personagem mesmo depois que o rapaz dá início às suas atividades homicidas – e Whishaw é brilhante ao transformá-lo em um indivíduo simultaneamente perigoso e inocente.

Introspectivo não por opção, mas por ser incapaz de compreender os próprios sentimentos, Jean-Baptiste é um fantasma vivo – e sua falta de cheiro (uma característica que o leva a ser ignorado por todos, até mesmo pelos animais) ganha um caráter inequivocamente religioso ao longo da projeção, como discutirei mais adiante. Felizmente, os roteiristas percebem a necessidade de abrir uma janela para a psique do personagem e o fazem através da narração de John Hurt, que, depois de desempenhar a mesma função em Dogville e Manderlay, está se tornando um especialista na área. O mais interessante é que o tal Narrador não emite nenhum tipo de juízo moral acerca de Jean-Baptiste, já que esta é uma lógica que não se aplica às ações do rapaz, que, à sua própria maneira, não está muito distante do John Doe vivido por Kevin Spacey em Se7en: ambos acreditam estar realizando uma obra muito mais importante do que as vidas de suas vítimas. E se a referência ao filme de David Fincher me parece apropriada, devo dizer que também me lembrei de Frankenstein ao observar a determinação do rico Antoine Richis (Rickman) em manter sua filha em segurança, espelhando a fuga desesperada do personagem-título da obra de Mary Shelley em sua tentativa de evitar que a Criatura se aproxime de sua jovem esposa Elizabeth (e, num outro paralelo interessante com aquele clássico, o angustiado “monstro” de Perfume deseja utilizar a garota como um pedaço de sua própria criação).

Porém, o que mais surpreende em Perfume é sua conotação claramente religiosa, a começar pela postura de adoração que Jean-Baptiste freqüentemente assume ao observar o processo de destilação utilizado para capturar a essência de plantas (e pessoas). Nestes momentos, é como se o protagonista estivesse testemunhando algo sagrado – e, neste contexto, a “essência” funciona quase como um sinônimo de “alma”, o que explica a frase de Baldini ao ensinar a destilação para seu pupilo: “É como capturar o perfume das rosas em sua morte”. Aliás, quando pensamos na cor intensamente vermelha daquelas rosas, o paralelo se torna ainda mais claro, já que esta remete ao tom do sangue, outro símbolo convencional de “Vida” (e tampouco é coincidência o fato de Jean-Baptiste ficar fascinado com duas mulheres ruivas; o tema se repete com coerência ao longo da narrativa). Assim, ao cheirar com devoção o corpo de sua primeira vítima (num ato necrofílico de bizarra beleza), o protagonista expõe totalmente suas vulnerabilidades e carências – e seu desespero ao perceber que o aroma sensual da garota se esvaiu com a morte é estranhamente tocante, assim como sua tentativa de segurar o intangível. Para completar, o filme estabelece uma relação mítica entre Jean-Baptiste e Jesus Cristo – algo que fica óbvio quando vemos o protagonista de braços abertos e estendidos em meio a uma multidão hostil. E não é à toa que todos aqueles que têm a oportunidade de conviver com o rapaz acabam dividindo o mesmo destino quanto são deixados para trás; afinal, não há razão para continuar respirando depois que um ser “iluminado” (Divino? Abençoado? Superior?) como Jean-Baptiste sai de nossas vidas, há?

Apesar de tudo, creio que Perfume jamais será uma unanimidade. É até mesmo provável que os 15 minutos finais irritem boa parte do público, que talvez estranhe os incidentes aparentemente ilógicos que tomam conta da narrativa. Se este for o seu caso, sugiro que encare o que ocorre não de maneira literal, mas alegórica: o sexo nem sempre é uma manifestação puramente física; muitas vezes, é uma representação do prazer que surge da comunhão entre as pessoas. Amar resulta em tocar, abraçar, beijar e, se for o caso, em sexo. Infelizmente para Jean-Baptiste, sua habilidade em despertar estes impulsos nas outras pessoas não se traduz em carinho e amor direcionados a ele mesmo; ele sempre será um indivíduo sem cheiro, atrativos ou alma.

E é por esta razão que a conclusão de Perfume é tão rica sob os pontos de vista poético, psicológico e religioso: o destino de Jean-Baptiste não apenas abre espaço para uma análise psicanalítica e simbólica complexa (focando-se na fase oral do desenvolvimento humano) como também complementa à perfeição a alegoria religiosa, já que, como Cristo, o personagem parece ascender misteriosamente ao Céu.

25 de Janeiro de 2007

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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