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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
29/11/2002 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
99 minuto(s)

Arca Russa
Russkij kovcheg - Russian Ark

Dirigido por Aleksandr Sokurov. Com: Sergei Dontsov, Leonid Mozgovoy, Mariya Kuznetsova, Aleksandr Chaban, Maksim Sergeyev e Vladimir Baranov.

`A Rússia é como um teatro`, diz alguém em certo momento de Arca Russa, uma surpreendente produção dirigida por Aleksandr Sokurov – e esta afirmação certamente encontra reflexo no próprio filme. Rodado inteiramente em um único plano-seqüência (ou seja: sem corte algum ao longo de seus 96 minutos), Arca Russa leva o espectador a um fascinante passeio através de 35 salas do Museu Hermitage, em São Petersburgo, recriando, através de elaboradas encenações, diversos momentos da história russa entre os séculos XVII e XX.

Tomadas longas não são novidade alguma na história do Cinema, é verdade: bem antes de Sokurov, o neo-realismo italiano se notabilizou pela utilização deste recurso, que também aparece em filmes como A Marca da Maldade, no qual Orson Welles deslumbra o público com a tensa abertura sem cortes; Festim Diabólico, que Alfred Hitchcock dividiu em oito takes de dez minutos cada; além de Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese; Boogie Nights e Magnólia, de Paul Thomas Anderson; e, é claro, O Jogador, de Robert Altman; entre diversos outros. E, vale lembrar, o recente Time Code (de Mike Figgis) tinha como chamariz o fato de utilizar 4 câmeras digitais para contar, também sem cortes, várias histórias que se entrecruzavam.

Ainda assim, o feito de Sokurov pode ser considerado inovador: ao contrário de Figgis, que trabalhou com elenco pequeno e diálogos improvisados, Arca Russa envolveu a coordenação de cerca de 2.000 atores e figurantes, tendo que driblar a complexa geografia do Hermitage, onde foi rodado: ao longo da projeção, a câmera percorre estreitos corredores, sobe escadas em caracol, atravessa um pátio coberto de neve e mergulha no meio de uma multidão de dançarinos – e tudo isso sem jamais perder a marcação previamente estabelecida, já que sempre consegue encontrar o ator certo no momento de sua fala. E, ao contrário do que poderíamos esperar, Arca Russa não é um filme de enquadramentos e movimentos rígidos: em certo momento, por exemplo, a câmera percorre um palco e `salta` sobre a orquestra, flutuando como um fantasma (algo apropriado, como explicarei adiante). Além disso, o diretor de fotografia – e operador da steadicam – Tilman Büttner consegue evitar ser surpreendido por qualquer reflexo, o que é notável, se considerarmos a abundância deste tipo de superfície no museu. É, portanto, fácil imaginar que a produção do filme tenha representado um verdadeiro inferno logístico para todos os envolvidos.

Porém, Arca Russa não impressiona apenas por sua proeza técnica - sua narrativa também se beneficia da estrutura planejada por Sokurov: à medida em que passeamos pelo Hermitage, os séculos passam diante de nossos olhos, promovendo encontros com figuras como Pedro, o Grande, Catarina II (em dois momentos bem distintos de sua vida) e com a trágica família de Nicholas e Alexandra Romanov. Mas o cineasta vai além, permitindo que o tempo assuma uma fluidez ainda maior a partir do momento em que as eras começam a se `cruzar`, como no instante em que o Fantasma que serve como guia para o espectador passa por uma freira que, mais tarde, será vista `perseguindo` a princesa Anastácia (há, ainda, um outro personagem misterioso e melancólico que `atravessa` os séculos e cujo significado não consegui decifrar – ainda).

Apesar disso, conhecer a história russa não é pré-requisito para aproveitar o filme, já que várias passagens possuem significado claro: a terrível sala na qual o Fantasma encontra um carpinteiro construindo caixões é, por exemplo, uma referência inequívoca ao massacre ocorrido durante a Revolução Bolchevique; e a melancolia deste mesmo Espectro ao final do Grande Baile que encerra Arca Russa é um indicativo claro do que está por vir (aliás, sua recusa em sair do salão e acompanhar os demais convidados é comovente).

Produzido com o apoio do próprio Hermitage (um dos diretores da instituição faz uma ponta interpretando a si mesmo), Arca Russa é uma produção riquíssima, impressionando graças ao seus belíssimos figurinos, `objetos de cena` e, é claro, ao seu cenário – todo o Museu. E como esquecer os momentos finais da projeção, que leva o espectador a descer uma longa escadaria em meio a centenas de figurantes até chegar a uma paisagem sombria e pouco promissora?

Não sei se o filme retrata uma curiosa viagem no tempo ou se é protagonizado por fantasmas: estamos testemunhando episódios da vida de todas aquelas célebres figuras ou apenas nos encontramos com espíritos que habitam o Hermitage? A resposta para esta dúvida pode ser difícil de ser encontrada (embora seja relevante, no mínimo, como curiosidade), mas ao menos uma coisa é certa: Arca Russa já entrou para a História do Cinema como uma obra inesquecível.
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30 de Novembro de 2002

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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