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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
19/07/2016 21/07/2016 2 / 5 5 / 5
Distribuidora
Vitrine Filmes
Duração do filme
82 minuto(s)

Mãe Só Há Uma
Mãe Só Há Uma

Dirigido e roteirizado por Anna Muylaert. Com: Naomi Nero, Daniela Nefussi, Lais Dias, Daniel Botelho, Luciana Paes, Luciano Bortoluzzi, Helena Albergaria e Matheus Nachtergaele.

É curioso que Mãe Só Há Uma, novo filme de Anna Muylaert que segue o sucesso colossal de Que Horas Ela Volta?, tenha feito sua estreia mundial na mesma edição do Festival de Berlim que exibiu outro lançamento brasileiro com o qual divide seus principais temas: Antes o Tempo Não Acabava. Em ambos os longas, um adolescente enfrenta dilemas com relação à sua identidade que acabam se manifestando/confundindo também com a descoberta/exploração da própria homo ou bissexualidade (a ambiguidade a este respeito ocorre nos dois trabalhos).


Aqui, o protagonista é Pierre (Nero), um jovem que mora numa casa na periferia de São Paulo com a mãe, Aracy (Nefussi), e a irmã caçula, Jaqueline (Dias). Integrante de uma banda amadora, ele gosta de usar roupas femininas e, em casa, se tranca no banheiro para se admirar no espelho com a boca pintada de batom. E é então que cai a bomba: sua mãe é presa e acusada de tê-lo roubado na maternidade, criando-o como se fosse seu – e, de repente, Pierre se descobre Felipe e morando na casa dos pais biológicos, Matheus e Glória (Nachtergaele e novamente Nefussi), e com um irmão mais novo, Joca (Botelho).

A inspiração óbvia do roteiro da própria Muylaert é o caso do menino Pedrinho, que tomou conta do noticiário brasileiro há alguns anos. Tanto na história real quanto na ficcional, o adolescente subitamente vê todo o conceito que tinha de “família” desintegrar-se enquanto é atirado em outro núcleo que vive em circunstâncias completamente distintas.

É um tema com imenso potencial dramático: mesmo tendo tirado o garoto dos pais, a criminosa é, para este, sua mãe verdadeira, ao passo que as vítimas (os pais biológicos) agora soam como intrusos tentando roubá-lo de tudo o que aprendeu a amar. Além disso, ao descobrir-se com outro nome, sua identidade em si é alterada, literal e figurativamente. Para complicar ainda mais, há a separação da irmã que amava e por quem era amado, ruindo de vez toda sua estrutura familiar. Como processar tudo isso? Como se relacionar com os estranhos que o geraram?

São muitas possibilidades para desenvolver a narrativa e, assim, é profundamente decepcionante que Mãe Só Há Uma não procure explorar de fato nenhuma delas. Em vez disso, a busca de Pierre/Felipe para definir sua identidade sexual acaba dominando a projeção: assim que retorna da delegacia após descobrir ter sido roubado, por exemplo, o rapaz imediatamente se tranca no banheiro para se maquiar. Sim, isto poderia ser empregado como um símbolo ou uma síntese de seus duros embates internos, mas o filme parece não ter esta imaginação, jamais abrindo realmente a possibilidade para que os elementos sexuais signifiquem algo além da exploração de seu desejo (ao contrário de Antes o Tempo Não Acabava, onde isso fica patente).

Aliás, nem mesmo para estabelecer um contraste entre os dois núcleos familiares isto serve, já que Aracy não chega a descobrir a bissexualidade do garoto, enquanto Matheus, depois de uma explosão homofóbica ao ver o filho usando vestido, já aparece com este travestido em público na cena seguinte, sem que uma transição mínima torne a mudança de sua postura plausível (e se isto quase acontece é porque Nachtergaele é um ator cujo talento colossal chega perto de distrair nossa atenção do roteiro mal construído).

E já que mencionei o ator, é frustrante perceber como, depois do elenco brilhante de Que Horas Ela Volta?, este Mãe Só Há Uma traz intérpretes irregulares em papéis importantes, fragilizando ainda mais a narrativa – e o protagonista, Naomi Nero, é especialmente problemático, já que faz Pierre oscilar entre a introspecção absoluta e as explosões de raiva, falhando em levar o espectador a compreendê-lo ou mesmo a simpatizar com ele (e considerando que ele é o centro do filme, este é um problema gravíssimo). E, afinal, por que Muylaert escala Daniela Nefussi para viver as duas mães de Pierre/Felipe? Que ideia quer passar: a de que ambas são as mães do jovem à própria maneira? Ora, isso é óbvio e, aliás, o interessante seria justamente contrastá-las externamente para fortalecer a posição materna que ocupam. Por outro lado, os pequenos Daniel Botelho e Lais Dias dominam bem suas cenas, trazendo bem mais calor humano ao projeto do que aquele projetado pelo personagem principal (e confesso que eu preferiria tê-los acompanhado em vez de seguir Pierre).

Recheado de cenas dispensáveis que parecem ter sido criadas apenas para aumentar a (curta) duração da projeção, o filme inexplicavelmente inclui passagens que enfocam Joca em sua aula de judô e suas paqueras na escola (e até mesmo os colegas deste), contrastando com a eficiência narrativa de Que Horas Ela Volta?, onde cada cena tinha uma função e ajudava a desenvolver os personagens e a história. E já que mencionei aquele longa, é inacreditável perceber como Muylaert parece não ter visto o próprio filme, já que aqui traz uma empregada doméstica absurdamente estereotipada e que chega a beijar Pierre carinhosamente ao conhecê-lo, servindo apenas de figuração uniformizada no restante do tempo. Ora, por que a realizadora não empregou o tempo, por exemplo, para explorar o conflito inevitável entre o protagonista e a mulher que o roubou? Por que Aracy simplesmente não volta mais a aparecer ou a figurar significativamente nas discussões do rapaz? (Os diálogos, diga-se de passagem, são pavorosos, soando como improvisações no set de atores sem talento para isto, lembrando um pouco a experiência fracassada da diretora em Chamada a Cobrar.)

Decepcionante também ao usar a expressão da bissexualidade de Pierre/Felipe como um misto de provocação adolescente e fonte de humor, Mãe Só Há Uma frustra ainda mais por conter, espalhadas aqui e ali, cenas que demonstram o potencial da trama: o desabafo de Matheus no boliche e a réplica de Pierre por sentir-se roubado duas vezes são exemplos da força que a produção poderia ter evocado.

Uma das vantagens da ficção é que um realizador pode escolher o foco que quer adotar e as tramas que prefere explorar, permitindo que se desenvolvam com cuidado e profundidade. Ao não fazer estas escolhas, porém, Anna Muylaert frustra precisamente quando havia parecido cimentar sua posição como uma diretora excepcional. A impressão que temos, ao final, é que este novo longa foi realizado às pressas, sem tempo para amadurecer e explorar os temas e seus personagens – e esta percepção de falta de cuidado, mesmo que não seja real, beira o imperdoável.

Tomara que em seus próximos trabalhos Muylaert não volte a se sabotar. Ela tem talento demais para isso.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Berlim 2016.

18 de Fevereiro de 2016

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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