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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
03/12/2016 12/01/2014 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
HBO
Duração do filme
440 minuto(s)

True Detective - Primeira Temporada
True Detective - First Season

Dirigido por Cary Joji Fukunaga. Roteiro de Nic Pizzolatto. Com: Matthew McConaughey, Woody Harrelson, Michelle Monaghan, Michael Potts, Tory Kittles, J.D. Evermore, Dana Gourrier, Madison Wolfe, Kevin Dunn, Alexandra Daddario, Glenn Fleshler, Erin Moriarty, Jay O. Sanders, Shea Whigham, Ann Dowd.

(Este texto contém spoilers.)


Em certo momento do último episódio da primeira e fabulosa temporada de True Detective, o detetive Rust Cohle, vivido por Matthew McConaughey, comenta ter percebido que há apenas uma história a ser contada, “a mais antiga de todas: a Luz versus a Escuridão”. É então que seu parceiro Marty Hart (Woody Harrelson), até então um sujeito bem mais otimista que o outro, completa, olhando para o céu estrelado: “Parece que a Escuridão tem bem mais território”.

É um instante tematicamente apropriado – especialmente considerando a última fala da série, dita por Cohle, que revela uma visão contrastante com o niilismo que dominara sua filosofia de vida durante todos os episódios: após anos e anos de convivência, Rust e Marty parecem ter atingido algum entendimento – e até mesmo uma sobreposição/quase inversão de suas respectivas posturas diante do mundo. Seria impossível, para este último, manter sua auto imposta cegueira depois de tantas experiências traumáticas, ao passo que o primeiro, que partira de um extremo e compreensível pessimismo, parece descobrir, ao quase morrer, algum sentido que lhe permite continuar vivo e (relativamente) são.

Estas jornadas psicológicas e emocionais são, em última análise, a principal virtude uma série que, sob a estrutura de um thriller policial, exibia preocupações mais filosóficas acerca de seus personagens – e a relação entre Marty e Rust sempre foi a alma da série e o motor de sua ação. Um dos maiores atrativos de True Detective residia não necessariamente na investigação do assassinato de Dora Lange (ainda que esta fosse suficientemente interessante para prender a atenção do espectador), mas nos embates entre os dois heróis: o pragmático e hedonista Marty e o introspectivo e solitário Rust.

O contraste, aliás, encontrava reflexo até mesmo em seus históricos familiares: se Rust exibia todas as cicatrizes da morte de sua filha pequena, Marty pouco valorizava a bela família que o cercava – e é irônico que justamente este insistisse em manifestar sua crença em valores religiosos e em um “sentido” para a vida, demonstrando impaciência crítica para com a descrença do parceiro diante de credos e outros conceitos metafísicos. Ao longo dos oito episódios, os dois homens frequentemente mantiveram conversas que acabavam resultando em um acordo tácito de silêncio provisório, já que nenhum consenso seria possível entre personalidades tão opostas – e a tensão e o humor dos roteiros de Nic Pizzolatto surgiam precisamente da constatação de que aquelas discussões se repetiriam enquanto os detetives mantivessem sua parceria.

Enquanto isso, o mistério que investigavam refletia, ao seu próprio modo, o centro filosófico daquelas mesmas questões: envolvendo crimes bárbaros contra mulheres e crianças (que, no mundo masculino habitado por Rust e Marty, eram não só a única salvação possível, mas também – e talvez por isso – suas vítimas constantes), a investigação inevitavelmente obrigava os detetives a confrontar a natureza do próprio Mal e, assim, o que chocava o personagem de Harrelson era visto pelo de McConaughey como uma extensão óbvia das perversidades do Homem. Suas respectivas reações, claro, correspondiam às suas posições habituais: Marty encarava os crimes como um trabalho a ser resolvido e então esquecido, enquanto Rust via ali uma batalha clássica contra a Escuridão.

Assim, é natural que a direção impecável de Cary Fukunaga tenha extraído tensão não das sequências de ação (ainda que tenha criado algumas memoráveis, como aquela que trazia os heróis se aproximando da casa de Reggie Ledoux e, claro, outra que envolveu um sensacional plano-sequência de seis minutos de duração), mas do clima subjacente de terror que permeava a trajetória dos detetives – e não é à toa que em vários momentos a série parecia flertar com o sobrenatural. Além disso, é preciso dar créditos ao roteiro pela forma elegante com que introduz e explora a referência aos contos de Robert Chambers na antologia “The King in Yellow”, costurando o principal elemento destes em sua própria narrativa: um texto teatral quase mítico que inspira horror e loucura em que o lê.

Claro que, acostumados como estamos com os clichês do gênero policial (e sua subcorrente sobre serial killers), muitos espectadores logo se tornaram obcecado com a identidade do “Yellow King” sugerido por True Detective – e aqueles que se concentraram no elemento “quem é o culpado?” acabaram assistindo à série de forma errada, já que provavelmente acabaram se desapontando com o que o final da temporada prometia trazer.

Pois o “Yellow King” era mais que uma identidade, mas um conceito. Um conceito de horror e loucura – exatamente como apresentado por Chambers -, mas também um que gira em torno da capacidade humana de infligir mal ao próximo. O “monstro no final do labirinto” mencionado por Rust num dos primeiros episódios é ao mesmo tempo literal (no caso deste final de temporada) e metafórico, podendo representar qualquer um dos seres sádicos sobre os quais lemos todos os dias nos jornais e que vão desde estupradores e assassinos até os “justiceiros” que se conferem os papéis de policiais, juízes e carrascos nas ruas brasileiras (e que incluem apresentadores(as) de tevê que sociopaticamente incentivam o linchamento). O mundo é repleto de Tuttles, de Errol Childress e afins – e é natural que, para escaparmos do sentimento de futilidade e de falta de propósito, tantos de nós busquem uma religião ou alguma outra forma de escapismo e/ou consolo. A simbologia religiosa presente em todos os episódios de True Detective é um reflexo disso – e inclui a própria religião concebida/seguida por seu vilão principal, que tem até mesmo seus símbolos sagrados e rituais particulares.

Um escapismo que, mesmo artificial, tem seu valor – desde que não utilizado para oprimir outros. Assim, é interessante que o mais cético dos personagens da série pareça descobrir, ao fim, um significado metafísico, uma “continuação” pós-vida.

Porque, ao fim, True Detective não é sobre mistérios ou mesmo criminosos, mas sobre seus heróis. É por isso, aliás, que sua estrutura, dividida em três tempos, é tão eficaz: quando descobrimos, no presente, que os heróis que admiramos no passado deixaram de se falar, sentimos frustração diante do rompimento – e, consequentemente, uma alegria compreensível quando retomam a velha parceria. E esta temporada da série de Pizzolatto girava em torno disso, destes homens falhos, quebrados, mas que se penitenciavam por seus erros e sonhavam em melhorar – mesmo nem sempre agindo segundo este sonho.

Basicamente, True Detective foi tão eficaz como narrativa por preparar o espectador, durante quase oito horas, para o momento em que seus heróis durões se entregariam às lágrimas e enxergariam, no outro, um reflexo de sua própria fraqueza.

Mas também de sua força.

10 de Março de 2014

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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