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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
22/07/2016 14/10/1972 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Warner Bros.
Duração do filme
129 minuto(s)

O Último Tango em Paris
Last Tango in Paris

Jovens Clássicos #09: O Último Tango em Paris 

Dirigido por Bernardo Bertolucci. Roteiro de Bernardo Bertolucci e Franco Arcalli. Com: Marlon Brando, Maria Schneider, Jean-Pierre Léaud, Maria Michi, Massimo Girotti, Catherine Breillat, Catherine Allégret, Gitt Magrini.


Fucking God!

Estas são as primeiras palavras que ouvimos sair da boca do norte-americano Paul, protagonista de O Último Tango em Paris. Com as mãos cobrindo os ouvidos, os olhos fechados e a expressão tomada pela mais pura angústia, ele reage não só ao som alto do metrô que passa nos trilhos acima de sua cabeça, mas ao tumulto interno que o ruído parece simbolizar. Em menos de cinco segundos desde que o vimos pela primeira vez, já sabemos estar diante de um homem arruinado.

Caminhando sem parecer perceber para onde está indo – e sem se importar com isso -, Paul (Brando) sequer nota a jovem e bela mulher que passa ao seu lado e que, logo adiante, salta casualmente sobre a vassoura de um gari numa demonstração de vitalidade que a contrapõe à postura perdida e deprimida do outro. E ainda assim, num destes acasos do destino, ambos acabam parando exatamente no mesmo lugar: um apartamento grande e desocupado cujo anúncio de “aluga-se” foi eficiente ao atraí-los para um encontro determinante.

  

Suas motivações, claro, são diferentes: se Jeanne (Schneider) demonstra interesse em realmente locar o imóvel (ou ao menos fantasia com isso), Paul parece apenas ter ido se refugiar temporariamente na escuridão de um lugar vazio como sua vida – e quando o telefone toca, ele atende com um “Não há ninguém aqui” que não deixa de ser tristemente verdadeiro. Assim, é com surpresa que testemunhamos o momento no qual, em um impulso, ele começa a beijar a estranha, que não só retribui como logo o envolve com as pernas em uma intensa e inesperada entrega sexual. Mas por que Paul e Jeanne agem daquela maneira?

Ele, porque só; ela, porque sim.

Notório por suas cenas de sexo até mesmo entre aqueles que nunca viram o filme, O Último Tango em Paris não é, ironicamente, uma obra que gira em torno disso; o sexo, para aquele casal, é um mero sintoma de uma profunda inquietação e também seu tratamento. Infinitamente mais importante é a dinâmica psicológica e emocional entre os dois e que já começa a se desenvolver no instante em que se encontram pela primeira vez no apartamento, quando ele tenta se esconder na escuridão e ela insiste em abrir as janelas, permitindo que a luz tome conta do ambiente. Sentimentalmente ferido pelo suicídio da esposa Rosa (e por outras atitudes desta que descobriremos posteriormente), Paul se fecha para tudo e para todos, mas especialmente para as mulheres: quando a sogra tenta lhe oferecer um gesto de carinho, ele morde sua mão; quando o vemos no mesmo quadro com Jeanne ou qualquer outra mulher, frequentemente há alguma barreira ou divisão entre eles; e quando várias das hóspedes de seu hotel abrem as portas de seus quartos para ver o que está acontecendo, durante uma discussão que ele mantém com a sogra, o sujeito fecha uma por uma – e, novamente, é revelador que imediatamente haja um corte para a cena seguinte, que traz Jeanne abrindo a porta e entrando no apartamento no qual se encontram, já que se recusa a se deixar afastar pelo amante.

         

Ainda assim, Paul insiste em certas condições, sendo a principal destas sua recusa em revelar seu nome ou ouvir o da garota, despersonalizando atos que não poderiam ser mais pessoais. O que ele busca, claro, é manter uma distância que, apesar do sexo, dificulte qualquer envolvimento maior que possa vir a novamente machucá-lo. Jeanne, por outro lado, se frustra com o acordo, pois, ao contrário dele, não teme se desnudar – literal e figurativamente – para Paul (algo que, sexismos à parte, justifica tematicamente a maior exposição do corpo de Maria Schneider). E, no entanto, o inevitável acontece: aos poucos, uma cumplicidade se estabelece entre os dois, se manifestando através de pequenos relatos confessionais, de brincadeiras na cama e de risos cúmplices que só podem ser trocados por quem já compartilhou o corpo um com o outro.

O trágico, porém, é que este encontro, tão fundamental para ambos, só é possível porque o casal vinha percorrendo direções opostas do mesmo caminho: após a primeira tarde, por exemplo, Jeanne vai se encontrar com o noivo (Léaud), enquanto Paul vai verificar a limpeza do sangue da esposa que cobria o banheiro no qual esta se matou – e o fim do casamento do protagonista ocorre justamente quando o casamento de sua jovem amante se aproxima. Além disso, a dinâmica da moça com os dois homens com os quais se envolve é radicalmente distinta: Tom, o noivo, é um aspirante a cineasta que tenta transformar seu noivado em um documentário e, assim, há um tom de afetação em seu relacionamento com Jeanne que faz deste algo artificial quando deveria ser justamente o mais autêntico. Se Tom chega a carregar um gravador que toca o que ele tenta estabelecer como a trilha sonora de seu noivado, por exemplo, Paul trata seus encontros com Jeanne sem qualquer retoque ou maquiagem – e se este insiste em não saber nada sobre a companheira de cama, aquele pressiona para que ela lhe conte tudo.

  

E, contudo, é justamente Paul quem parece enxergá-la melhor e com mais profundidade, sendo também o que parece se interessar autenticamente por ela. Não é acaso, portanto, que Jeanne em certo momento acuse o noivo  de “estuprá-la” embora este jamais pareça tocá-la direito e seja Paul quem de fato execute o ato que poderíamos realmente classificar como estupro – para a garota, a exploração feita por Tom para seu filme é infinitamente mais intrusiva do que o sexo com Paul, o que, curiosamente, acabou por refletir a própria relação da atriz Maria Schneider com o diretor Bernardo Bertolucci e com Marlon Brando, já que viria a acusar o primeiro de explorá-la enquanto afirmaria, até o fim (precoce) de sua vida, que o antigo companheiro de cena se mantivera um de seus melhores amigos até morrer. O paralelo é apropriado em vários níveis: se Tom parecia encarar o casamento apenas como um clímax adequado para seu filme, Paul via Jeanne como uma forma de tratamento emocional e psíquico – ambos motivos egoístas, é verdade, mas ao menos neste último caso o interesse era por ela, não por um documentário. (E é preciso apontar o simbolismo de Tom atirar na água uma boia salva-vidas que imediatamente afunda e que, como se não bastasse, exibe em sua superfície o título de O Atalante de Jean Vigo?)

Complexo em seus desejos e frustrações, Paul é um personagem que poucos atores conseguiriam encarnar com a sensibilidade e a compreensão exibidas por Marlon Brando, que – como já defendi várias vezes – foi o melhor ator que a Sétima Arte já produziu. Sem jamais se entregar a histrionismos, ele frequentemente evoca a dor do protagonista através de um suspiro, um menear de cabeça ou de uma breve hesitação ao falar. Notem, por exemplo, que no instante em que ele diz “Não consigo me lembrar de muitas coisas boas”, Brando não adota um tom dramático ou triste, fazendo a afirmação com a naturalidade de quem já se acostumou ao fato de ter levado uma vida de frustrações – e, da mesma forma, percebam como ele gagueja ao confessar “Eu acho… eu acho que sou feliz com você”, como se temesse quebrar o encantamento ao reconhecer isto em voz alta. Carismático e fascinante a ponto de conseguir sustentar um longo monólogo no qual a câmera se detém próxima ao seu rosto em uma extensa tomada sem cortes, o ator oferece uma performance corajosa na qual se expõe de uma maneira que poucos artistas com o reconhecimento que ele já havia alcançado teriam o destemor de abraçar. Exalando também uma intensa energia sexual (e lembrem-se de que neste mesmo ano ele interpretou o idoso Dom Vito Corleone de O Poderoso Chefão), Brando não procura suavizar a natureza de Paul, que emprega a grosseria, a vulgaridade e a agressividade como forma de manter Jeanne afastada (o que fica patente na notória cena da manteiga), o que não o impede de se surpreender quando esta insiste, em uma conversa no banheiro depois que ele a lavara (outro simbolismo importante), que o ama – e o que ele faz a seguir, pedindo que ela o penetre, não deixa de ser uma forma de equilibrar o que ele fizera antes.

  

Pois a verdade é que Paul é uma coleção de rancores, recalques e humilhações, mas não é um homem mau: diminuído pela esposa durante anos, há também um componente de revanchismo em suas ações com Jeanne, já que até então ele fora insignificante a ponto de ganhar uma cópia barata na figura do amante de Rosa. Ainda assim, é revelador que a maior mágoa de Paul não seja reconhecer-se intercambiável nos afetos da ex-companheira, mas sim perceber que jamais a conheceu de fato – e a performance de Brando na cena em que seu personagem confronta o cadáver da esposa é certamente um dos melhores momentos de uma carreira repleta de grandes atuações, já que oscila com segurança e delicadeza entre a raiva, o ressentimento, o luto, o desprezo pela religiosidade da sogra que deforma Rosa numa maquiagem grotesca de domesticidade e, finalmente, a mais profunda e torturante dor por se ver incapaz de sequer fazer uma suposição sobre os motivos por trás do suicídio da mulher com quem dividira a vida por cinco anos. (Aliás, esta cena acabaria por servir de óbvia inspiração para o monólogo de Tom Cruise diante do pai doente em Magnólia.)

     

Não menos notável, porém, é o trabalho de Maria Schneider, que não apenas consegue se manter visível e interessante mesmo dividindo a cena com um gigante como Marlon Brando, mas também confere profundidade a uma personagem que poderia facilmente ter se transformado em um mero objeto de cena. Compondo Jeanne como uma jovem impulsiva e inconsequente que parece manter o noivado com Tom mais por inércia do que por interesse romântico, a atriz vai da vulnerabilidade completa a uma força incontestável de maneira fluida e tão complexa quanto a trajetória construída pelo veterano colega de elenco.

O que nos traz ao fabuloso e inesperado clímax dramático de O Último Tango em Paris: despertado de sua letargia emocional depois de seu “confronto” com Rosa, Paul imediatamente abre mão do apartamento utilizado para seus encontros com Jeanne – um gesto de desprendimento que, paradoxalmente, sinaliza seu desejo de finalmente se permitir sentir algo pela moça, de se deixar pertencer. O curioso é que ao buscar se tornar “apresentável” para Jeanne, Paul se torna apenas um homem patético vestindo terno e gravata, expondo-se para ela como o que é de fato: um viúvo estéril, sem muitos recursos financeiros e dono de um hotel barato. O efeito sobre Jeanne é imediato e belissimamente evocado por Schneider, cujo olhar de decepção e mesmo de repulsa permite que o espectador perceba antes de Paul que seu novo amor será tão frustrado quanto o anterior – e se mencionei que os amantes se encontraram quando caminhavam em direções opostas, a conclusão inevitável é a de que, ao seguirem em seus passos, o resultado seria a separação.

Que aqui assume a imagem deprimente de uma jovem enojada que faz o amante patético de meia-idade gozar uma última vez em meio a mesas vazias de um salão escuro.

    

E aí reside o brilhantismo de Bernardo Bertolucci, que compreende que a força de um plano como este jamais poderia ser igualada por páginas e páginas de diálogos. Aliás, se demorei até o terço final deste texto para mencionar o trabalho do cineasta, isto não se deve à sua desimportância, mas ao oposto: sua capacidade de perceber que estava lidando com uma narrativa que seria bem ou mal sucedida dependendo da eficácia de seus atores e que o levou a criar condições para que estes pudessem desenvolver seus personagens da forma mais eficiente possível (se no processo ele acabou por explorar Maria Schneider e/ou abusou desta é uma outra discussão; válida, certamente, mas que pertence a um texto sobre o sexismo da época – e da atual –, não numa análise da obra em si). É genial, por exemplo, como Bertolucci permite que Brando incorpore à persona de Paul elementos de sua própria biografia – e, assim, quando o personagem diz que já tocou bongo, foi boxeador, revolucionário num país latino e teve “milhares de nomes”, fica evidente que está mencionando não só papéis que seu intérprete viveu, mas também passagens de sua vida fora das telas (além, claro, do instante no qual Paul surge vestindo apenas a camiseta branca idêntica à do Stanley Kowalski de Uma Rua Chamada Pecado).

Usando também outro elemento físico – o uniforme do pai de Jeanne – como pista para conflitos psicológicos que desempenham um papel importante na relação entre a garota e aquele homem bem mais velho, Bertolucci não por acaso leva Paul a usar o quepe do falecido militar em seus momentos finais com a amante, que finalmente revela seu nome ao mesmo tempo em que abraça a conclusão lógica que isto traz: a morte da idealização e da fantasia. Já Bertolucci, por sua vez, faz seu próprio ataque ao artifício da construção dramática ao alfinetar os jovens da nouvelle vague através da figura de Tom, que não só é vivido pelo alter ego de Truffaut como aqui surge representando uma caricatura pouco elogiosa de Godard.

  

Culminando numa competição de dança que justifica de forma literal o título, o diretor usa a linguagem do tango, que em sua essência ilustra o jogo de conflito e sedução, para comentar a trajetória de Paul e Jeanne. A abordagem de Bertolucci, porém, é um pouco mais intrincada do que isso, já que seus dançarinos aparecem executando os passos de forma impecável, mas robótica, sem vida, ao passo que os movimentos do casal principal, caóticos e ridículos que são, respiram vida e espontaneidade. Além disso, os próprios travellings feitos pela câmera do mestre Vittorio Storaro durante toda a projeção podem ser vistos como um tango particular dos realizadores com seus personagens.

     

Um tango que se encerra quando Jeanne dispara a arma que foi de seu pai contra o homem que usa o quepe deste, interrompendo a dança e, consequentemente, os movimentos da câmera, que agora se deterá de forma rígida nos personagens destruídos. Pois, no fim das contas, Paul estava certo: ao abandonar o prazer despersonalizado e acreditar na possiblidade de um amor que o redimisse, ele acaba sendo punido e arruína, com sua passagem pela vida de Jeanne, a inocência romântica desta.

E com a dor adicional de constatar, em seus últimos segundos, que mais uma vez havia fracassado em conhecer a mulher que amava.

22 de Julho de 2016

Textos anteriores da série Jovens Clássicos: SerpicoTodos os Homens do PresidenteFogo Contra FogoBusca FrenéticaFrankenstein de Mary ShelleyContatoO Silêncio dos Inocentes Se7en: Os Sete Crimes Capitais.

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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