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92 - Adeus a Rubens Ewald Filho Conversa de Cinéfilo

 

- Eu sou um grande admirador seu.

Entre gaguejos, foi esta a primeira frase que disse a Rubens Ewald Filho. Ou algo muito similar. Acabávamos de sair de uma pequena sala de projeção em um arranha-céu de São Paulo depois de uma exibição para a imprensa de O Sexto Sentido, em outubro de 1999, e eu me sentia eufórico. Com apenas quatro anos de carreira e celebrando o segundo ano do Cinema em Cena, enxergava, naquela sessão, um grande passo: não apenas aquela havia sido minha primeira cabine “profissional” como ainda era validada pela presença do crítico de cinema mais famoso do país. Afinal, se eu havia dividido a sala com Rubens Ewald, já não era mais um amador completo.

Caminhando em direção ao elevador, eu tentava criar coragem para abordá-lo, mas, somando-se à sua fama e à minha pouca idade, havia o fato de que ele era um gigante. Corpulento, parecia bem maior do que seu já considerável 1,85m de altura e, como resultado, eu me sentia minúsculo. Física e profissionalmente. Foi então que um conhecido em comum, percebendo minha hesitação e sabendo de minha admiração, tomou a iniciativa de chamá-lo e me apresentar.

A esta altura já estávamos no elevador e o pequeno espaço o tornava ainda mais imponente. Até que ele abriu um imenso sorriso, apertou minha mão e me senti imediatamente à vontade. Antes de chegarmos ao térreo, ele já havia perguntado para onde eu escrevia, se tinha gostado do filme e demonstrado achar graça – de modo simpático – de minha admiração.

- Imagina! – disse, como se a mera ideia de ser o causador do meu nervosismo fosse algo absurdo.

Minutos depois, eu ainda sorria sozinho. “Conheci o Rubens Ewald Filho!”, pensava.

Menos de 20 anos depois, Rubens, que eu viria a chamar de “amigo”, está morto. Vítima de um mal súbito que o fez perder a consciência e sofrer uma queda grave nas escadas rolantes de um shopping de São Paulo, ele passou o último mês em coma induzido até sofrer um ataque cardíaco esta tarde, dia 19 de junho de 2019, e encerrar sua notável trajetória no planeta.

E aqui eu deveria incluir um parágrafo convencional de obituário informando que Rubens nasceu em Santos, em 7 de março de 1945, escreveu para este e aquele veículo, apresentou este e aquele programa neste e naquele canal, publicou livros e mais livros, tornou-se a cara da cerimônia do Oscar no Brasil, escreveu novelas, dirigiu peças de teatro, editou uma das mais importantes coleções de biografias do audiovisual brasileiro (a Aplauso), estabeleceu-se como referência absoluta da cinefilia no país com seus guias de vídeo, tentou dar forma a um polo de produção em Paulínia e foi curador de várias edições do Festival de Gramado. Cada um destes capítulos de sua vida deveria vir acompanhado das referências apropriadas, separados por datas específicas e informações detalhadas sobre os títulos de seus livros e demais projetos.

Mas estes detalhes vocês certamente poderão encontrar nas centenas de textos que serão escritos sobre sua morte e que contarão com uma apuração bem mais cuidadosa do que eu seria capaz de fazer. Além disso, estes dados constituem o (invejável) currículo de Rubens, não quem ele foi como indivíduo.

Neste sentido, eu posso contribuir um pouco: Rubens Ewald Filho foi um homem generoso, um amigo leal e um cinéfilo admirável.

Minha primeira experiência com sua natureza grandiosa, por exemplo, ocorreu de modo inesperado e resolveu quase que por mágica um impasse que durava há anos em minha família: quando decidi largar o curso de Medicina na UFMG para me dedicar com exclusividade ao recém-criado Cinema em Cena, minha família ofereceu uma resistência surpreendentemente pequena à ideia. Minha mãe perguntou apenas se eu havia refletido o suficiente e estava convencido de estar fazendo a escolha correta e minha avó, que tanto orgulho demonstrara com minha entrada na faculdade, comentou apenas que “eu realmente seria mais feliz escrevendo”. Na verdade, a única pessoa em toda a família que protestou foi meu tio-avô José Ribeiro, que, na prática, era (e, aos 89 anos de idade, ainda é) muito mais meu avô do que seu irmão, que era uma figura ausente e com a qual eu não tinha intimidade alguma. Tentando persuadir minha mãe a me impedir de largar a Medicina, ele não se conformava com o conceito de eu largar o jaleco para “mexer com Cinema na Internet” – e eu entendo: se hoje isto já seria algo temeroso, na época era impensável, já que a web era território misterioso. Assim, durante anos meu tio-avô insistiu na questão, mesmo quando já era claro que a discussão estava encerrada.

Até que, certo dia, “O Globo” fez uma matéria sobre a carreira de Rubens e, indagado sobre profissionais da “nova geração” que admirava, ele citou apenas meu nome – algo que descobri através de meu tio-avô, que, depois de ler o jornal, ficou orgulhosíssimo e se convenceu de que, afinal, eu talvez estivesse fazendo algo certo. Afinal, o “homem do Oscar”, que ele sempre via na tevê, parecia aprovar meu trabalho. E este foi o fim do debate na família.

Já em 2008, quando eu fazia parte de uma equipe responsável por organizar uma mostra de Cinema japonês em Belo Horizonte, tive a ideia de convidar Rubens para ministrar uma masterclass. O problema é que não tínhamos dinheiro algum para remunerá-lo, o que exigiu uma considerável cara de pau de minha parte ao abordá-lo. Para complicar ainda mais a situação, ele estava prestes a estrear uma montagem de O Amante de Lady Chatterley no teatro e, como diretor do espetáculo, precisava focar completamente na tarefa. Ainda assim, por pura amizade, ele veio a BH e, para meu grande embaraço, foi recebido por uma sala com menos de 20-25 pessoas (não por falta de prestígio, mas porque o belo-horizontino era (é?) assim: reclama que nenhum evento ocorre na cidade, mas falha em prestigiá-los quando vêm). Pois Rubens deu a aula com profissionalismo absoluto, foi atencioso com todos que o abordaram, agradeceu o convite e jamais comentou o fiasco no qual eu o havia envolvido.

Ao contrário: durante nossos anos de amizade, me convidou para escrever um livro para a Coleção Aplauso, permitindo que eu escolhesse o biografado (escolhi o cineasta Helvécio Ratton) e me dando completa liberdade mesmo quando percebeu que o livro ficara bem maior do que o esperado – e o texto que escreveu para a contracapa, classificando o volume como “um dos livros mais empolgantes da coleção”, é um troféu que guardo com carinho (bem como o lindo e-mail que me enviou ao acabar de ler a primeira versão). Tempos depois, foi – suspeito – instrumental nos convites para que eu cobrisse o Festival de Gramado e participasse de seu júri oficial.

Foi em Gramado, por sinal, que o vi pela última vez. Depois de me ver almoçando sozinho, acenou em minha direção, me apresentou aos cineastas com quem conversava e, pouco depois, saímos juntos do restaurante e passamos cerca de uma hora apenas... proseando. E lembro de sentir, mesmo depois de tanto tempo, uma empolgação tangível por estar ali falando com Rubens, como se o simples fato de ser tratado como amigo e colega por este fosse a validação definitiva de ser um crítico de cinema de verdade.

Finalmente nos despedimos na porta do Palácio do Festival; ele iria encontrar com alguém da organização e eu voltaria ao hotel para descansar um pouco antes das sessões da noite. Antes de nos afastarmos, porém, eu disse a ele algo que, em retrospecto, me parece ter sido o modo mais apropriado de dizer “adeus” mesmo que eu não soubesse então que estava fazendo isso:

- Eu te admiro muito, meu amigo.

Ou algo similar.

19 de Junho de 2019

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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