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Festival de Berlim 2020 - Dia #05 Festivais e Mostras

DIA 05

Hoje escreverei apenas sobre três filmes, pois tenho uma sessão às 8h15 da manhã - de mais de três horas de duração - e preciso dormir mais cedo.

21) Há um plano no brasileiro Todos os Mortos, parte da mostra competitiva do Festival de Berlim, que traz duas empregadas domésticas negras em um canto do quadro enquanto três mulheres brancas (as patroas) ocupam o oposto. A tragédia está na grande distância entre estes dois pontos e que diz tudo sobre um mundo definido pela desigualdade e pela incapacidade dos integrantes da chamada “elite” de perceber a injustiça deste sistema. Porque ao contrário do que alguns querem fazer crer, a luta de classes não é uma fenômeno recente, não é um conceito “de esquerda” e definitivamente não é uma invenção de acadêmicos que desprezam a burguesia.

Vejamos, por exemplo, o que os diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra discutem neste longa, que, ambientado em 1899, apenas onze anos depois da abolição da escravatura, se concentra em dois núcleos familiares em São Paulo: as Soares (mãe idosa, uma filha freira e outra psicologicamente instável) e a composta por Iná e seu filho João. Enquanto as primeiras lidam com a possibilidade de dificuldades econômicas depois da perda financeira representada pela alforria de seus escravos, os últimos precisam encontrar abrigo e algum emprego que lhes possibilite comer. Pois o fim da escravidão foi um passo importante, mas que jamais considerou de fato a imensa dívida para com aqueles que libertou e que deixaram de ter donos, mas não de serem dominados. E o abismo no qual foram atirados por uma longa história de opressão é um difícil de escalar – principalmente em uma sociedade que, 130 anos depois, ainda mantém a lógica do “quarto de empregada”, do “elevador de serviço” e ressente ver o filho do pobre na mesma faculdade que seus próprios descendentes ou dividindo a fila para embarcar em um avião.

Observemos, por exemplo, o interesse de – reparem o nome - Isabel (Thaia Perez), a matriarca Soares, por João (Agyei Augusto), filho criança de Iná (Mawusi Tulani), antiga criada da família: na superfície, a mulher exibe as melhores intenções (“ele vai aprender a tocar piano”); na realidade, contudo, as “vantagens” que alega oferecer têm como principal objetivo aplacar sua própria consciência, permitindo que acredite ser uma “boa pessoa”, enquanto continua a praticar o velho método de tirar as crianças de suas mães pobres para contar com mão-de-obra barata nas atividades domésticas, transferindo a senzala para o quartinho dos fundos. Não é à toa que Josefina (Alaíde Costa), criada da família por décadas, testemunhou os nascimentos das filhas da patroa, mas não dos próprios netos – um fato que Isabel certamente jamais interpretou como errado, já que a mulher era “praticamente da família” (o truque perverso reside no “praticamente”).

Todas estas questões são apresentadas de modo claro ao longo de Todos os Mortos, que, tematicamente, merece fartos créditos. O problema é sua forma, que, ao adotar uma teatralidade proposital como signo de época, atua mais como distração do que como apoio narrativo. Além disso, os quadros rígidos e estáticos, o ritmo lento dos diálogos e o excesso de planos fechados que convertem longos trechos do filme em uma série desinteressante de closes acabam por completar o estrago e desvalorizam até as imagens mais inspiradas que surgem aqui e ali.

A compulsão de Ana (Carolina Bianchi) de enterrar objetos, por exemplo, é uma ação recorrente que, unida ao desprezo que a mulher parece nutriz pelo pequeno João, sugere uma mulher (ou, por que não?, uma classe) dividida entre a culpa e o ressentimento por senti-la e que encontra, na negação da história (ou na insistência em enterrá-la, dizendo que é apenas passado) uma forma de seguir em frente sem ter que lidar com as reparações devidas às minorias. Do mesmo modo, a determinação de Iná de não voltar a trabalhar para as Soares deveria soar como um brado, uma rebelião particular e coletiva, mas a mise-en-scéne entediante a transforma em mera teimosia.

Mais eficaz, por outro lado, é a sobreposição de épocas na decisão de vestir as personagens de passado e plantá-las na São Paulo do presente, o que sublinha a triste contemporaneidade de questões raciais, sociais e econômicas que deveriam soar anacrônicas em 2020. Em vez disso, o preconceito que a freira Maria (Clarissa Kiste) demonstra pelas crenças de Iná é ainda parte de uma tradição hoje seguida pelos evangélicos que atacam os espaços empregados por qualquer religião de matriz africana, ao passo que a escravidão, os castigos e o extermínio das populações negras são representadas nas favelas, nos meninos vendendo balas no semáforo e nos massacres diários cometidos pela Polícia Militar.

Todos os Mortos é um filme que reconhece todos estes fatos, mas falha ao tentar articulá-los.

 

22) Filme de câncer nunca acaba bem. Se uma obra nos apresenta a um personagem gravemente adoentado, há praticamente uma exigência dramática para que ao fim da projeção ele se encontre sob a terra – de preferência depois de deixar lições importantes sobre como devemos valorizar a vida, como o mundo é um lugar cheio de beleza e como o amor cura tudo (menos o câncer).

Assim, quando já nos primeiros segundos do alemão My Little Sister vemos Lisa (Nina Hoss) doando sangue para o irmão gêmeo Sven (Lars Eidinger), que surge sem cabelo, sob uma luz azul fria e em isolamento numa cama de hospital, os propósitos dramáticos da dupla de cineastas Stéphanie Chuat e Véronique Reymond já ficam patentes. Na verdade, eu poderia citar de memória dúzias de filmes bastante parecidos com este – alguns melhores (Alabama Monroe), outros piores (A Culpa é das Estrelas)-, o que não costuma ser um bom sinal em uma produção.

E, no entanto, My Little Sister encontra sua razão de ser graças à performance intensa, sensível e complexa de Nina Hoss, que evoca toda a pressão à qual sua personagem é submetida ao ter que lidar com a doença de Sven, com o egoísmo da mãe (a veterana Marthe Keller) e com a decisão do marido (Jens Albinus) de aceitar um contrato de trabalho que a manterá (e aos filhos) em outro país e longe da Berlim à qual desejava retornar. A beleza do trabalho da atriz pode ser resumido em uma cena em particular, quando Lisa conversa pelo telefone com um médico enquanto tenta comprar café no hospital: quando um estranho a auxilia, colocando uma moeda na máquina, a mulher subitamente desmonta diante do gesto de atenção, expondo, assim, todas as fraturas acumuladas ao longo do tempo e que precisavam de apenas mais um risco (ou, paradoxalmente, de uma pequena tentativa de reparo) para destruir de vez o muro que a mantinha íntegra.

Talvez isto não seja o bastante para tornar o filme memorável – ou justificar sua presença na mostra competitiva de Berlim -, mas é um pequeno presente nesta sua compreensão de nossa frágil humanidade.

 

23) Karim Aïnouz é um de nossos melhores cineastas – e também um dos mais versáteis. Vê-lo saltar de um projeto a outro totalmente diferente com tamanha facilidade é um daqueles prazeres cinéfilos que estimulam a admiração por realizadores sempre dispostos a surpreender seu público. Neste aspecto, considerando que o último filme do diretor foi o lindo A Vida Invisível, um melodrama de época, e este seu novo esforço é um documentário sobre as manifestações que vêm ocorrendo na Argélia desde fevereiro de 2019, a disparidade temática e de linguagem mais uma vez impressiona.

Infelizmente, o mesmo não pode ser dito quanto ao resultado em si, pois Nardjes A. talvez seja o pior trabalho de sua carreira.

Visitando pela primeira vez a Argélia, terra natal de um lado de sua família, Aïnouz aterrissou no país em um de seus períodos mais turbulentos desde o fim da guerra pela independência, em 1962, e que foi disparado pela decisão do presidente Abdelaziz Bouteflika de concorrer a um quinto mandato que resultaria em um total de mais de vinte anos no poder. “Nós somos uma República, não um Reino!”, gritaram milhões de pessoas nas ruas em um movimento que abarcou gerações e correntes políticas distintas sob um mesmo protesto. E é natural que, como um contador de histórias e ser político, o cineasta tenha decidido registrar as manifestações, já que isto, por si só, se tornaria um importante documento histórico.

O inexplicável é por que ele decidiu adotar o olhar da jovem Nardjes como centro narrativo.

Assumindo que foi ao primeiro protesto sem saber muito bem o que esperar, empolgando-se com o que viu e se tornando uma participante ativa de todos os seguintes, a protagonista deste documentário não é uma pessoa particularmente politizada, suas falas jamais vão além dos lugares-comuns e sua única contribuição visível para o movimento reside em sua empolgação juvenil. Não que o olhar do homem ou da mulher comum não mereça destaque, mas nada em Nardjes A. sugere uma intenção de abordar a revolta popular a partir do “anônimo”; aliás, por natureza o filme acaba por elevar a garota a uma posição de porta-voz da juventude que não encontra respaldo nos clichês que expressa (“Ninguém pode nos parar”; “A voz do povo blábláblá”; etc).

Muito mais interessantes são, por exemplo, as senhoras que fazem breves discursos durante a projeção – uma comentando as virtudes da juventude e outra demonstrando uma revolta acumulada ao longo de décadas. Quando as contrastamos com as interferências de Nardjes na tela ou através de narrações em off, torna-se ainda mais frustrante aceitar como o filme opta por nos prender a ela por toda a sua duração, condenando-nos a ouvir inúmeras vezes como está alegre por fazer parte de um momento histórico ou repetindo frases de efeito como “vocês no batem e nós sorrimos; nós os mataremos com a Paz” (algo que nem faz sentido e, se tomado como estratégia, resultaria num massacre).

E mesmo que entenda a ideia por trás da decisão de acompanhar Nardjes enquanto dança e festeja nos bares da cidade depois das manifestações, celebrando sua juventude, sua liberdade e sua energia, na prática é difícil aguardar enquanto Aïnouz enfoca a moça cantando juntamente com a música que sai do rádio do carro enquanto se dirige para uma balada.

O mais triste é que a personagem-título não merece a frustração ou os julgamentos presentes nos parágrafos anteriores, pois sua disposição de ir para as ruas é admirável e não foi sua iniciativa protagonizar um projeto como este. No entanto, ao colocá-la nesta posição de destaque não merecido, é o próprio filme que a torna sujeita a este tipo de escrutínio que não deveria enfrentar.

25 de Fevereiro de 2020

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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