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Festival de Berlim 2020 - Dia #08 Festivais e Mostras

DIA 08

34) Em teoria, o propósito de The Roads Not Taken, escrito e dirigido pela cineasta britânica Sally Potter, é interessante: ancorar o espectador na perspectiva de um homem que, em estágio avançado de uma forma precoce de demência, navega pelas próprias memórias enquanto é forçado a lidar com a confusão de seu presente ao ser levado pela filha para breves compromissos cotidianos. Na prática, porém, o que temos é um filme que se revela apenas confuso, sem foco e frustrante – e não como reflexo das experiências do sujeito, mas em detrimento destas.

A abordagem se mostra problemática já em sua raiz: ciente de que precisa de uma porta de entrada para a subjetividade do escritor Leo (Javier Bardem), a realizadora opta por adotar como protagonista a filha deste, a jovem Molly (Elle Fanning), transformando a angústia da moça no centro dramático real da narrativa à medida que tenta se comunicar com o pai e lidar com o dia impossível que está enfrentando. Carinhosa e dedicada, Molly percebe o tormento de Leo por lembranças e sentimentos disparados por qualquer som ou ambiente com o qual interage, mas, presa do lado de fora pela incapacidade do pai de se expressar, pode apenas buscar consolá-lo de perdas que não conhece e remorsos que não compreende.

Saltando de um flashback a outro em dois tempos diferentes da vida do escritor, a montagem de The Roads Not Taken procura nos conduzir entre estas suas “versões” de maneira fluida, mas desaponta por não explorar as possibilidades oferecidas pela premissa, apresentando-se bem mais engessada e tradicional do que claramente julga ser, já que, entre outras decisões, respeita a cronologia dentro de cada flashback específico, como se as lembranças de Leo fosse simultaneamente aleatórias e organizadíssimas (o que ressalta, por comparação, como a estrutura de 21 Gramas – para citar um exemplo com propósito similar - segue desafiadora e brilhante 17 anos depois). Para piorar, o roteiro de Potter é previsível em suas revelações dramáticas, permitindo que já na primeira cena entre Bardem e Salma Hayek antecipemos para onde aquilo irá levar mesmo que o filme leve mais 70 minutos para atingir o que julga ser seu clímax.

É problemática, também, a recusa do longa de esclarecer a natureza da doença neurológica de Leo, que nos primeiros minutos pode ser confundida até mesmo com uma depressão profunda – e não deixa de ser irritante como a reação de Molly a qualquer um que não compreenda imediatamente o problema do pai é de confronto, ficando ofendida em vez de explicar a situação. Isto, claro, é um modo de introduzir melodrama constante na história, o que só não é mais gratuito do que o atrapalhado comentário social que Potter tenta fazer através de uma cena na qual uma estranha grita “Saia do meu país!” para Leo, como se a diretora julgasse que atirar um momento de xenofobia e racismo casuais na narrativa fosse o bastante para tornar a obra contemporânea em suas preocupações.

Já os dois atores principais, embora inquestionavelmente talentosos, ficam presos a composições de uma nota só: Fanning com o olhar ora triste, ora doce, e Bardem com gemidos baixos e boca semiaberta na versão atual do personagem e com expressão sofrida nas demais.

E se Sally Potter queria despertar lágrimas com a revelação da origem de certo nome, o máximo que consegue é provocar risos involuntários ao sugerir uma “homenagem” tão desajeitada e equivocada quanto o restante do filme.

 

35) Um asteroide que deixa um rastro rosa em sua jornada se aproxima da Terra enquanto mulheres nuas aparecem nas ruas de todo o Brasil em número crescente, provocando ansiedade e consternação no país. Enquanto isso, as irmãs Ana e Júlia partem em uma viagem rumo a uma pequena cidade do sul do país com o objetivo de encontrarem o pai que partiu há anos, quando a mãe das garotas começou a apresentar os primeiros sintomas da doença que agora está prestes a matá-la. Qual a conexão entre todos estes elementos – caso haja uma - é algo que Irmãs usa como ponto de partida em uma narrativa delicada sobre a transição da infância para a idade adulta, relações familiares e empoderamento feminino.

Para isso, os diretores Vinícius Lopes e Luciana Mazeto, também responsáveis pelo roteiro, expõem na tela tanto o universo compartilhado pelas personagens (o mundo exterior, a realidade – ou “realidade”) quanto os íntimos de cada uma, experimentando com a linguagem para encontrar formas de evocar o que sentem, pensam, temem e desejam. Esta experimentação surge já nos segundos iniciais, quando vemos as garotas diante de uma projeção que parece antecipar sua jornada, representando-a na parede e em seus corpos iluminados pelo projetor; já mais tarde, os diálogos entre as duas são exibidos através de legendas, sem suas vozes, sugerindo, entre outras coisas, uma intimidade que dispensa oralidade para se expressar.

Além disso, os realizadores brincam com a natureza de mídias diferentes (e suas particularidades) ao apresentarem um confronto entre Ana e seu pai (Felipe Kannenberg, um ator carismático e talentoso que deveria aparecer em mais projetos) na tela de uma televisão, como uma novela, com direito a closes dramáticos e intenções exageradas, jogando também com a edição de efeitos sonoros em outra cena que traz os ruídos presentes apenas na imaginação das irmãs. Claro que como todo risco assumido, há instantes em que os jogos do longa não funcionam tão bem – e o interlúdio que traz as meninas e a mãe acamada dublando uma música é mais interessante como conceito do que como cena finalizada.

Mas o centro emocional de Irmãs reside mesmo na cumplicidade entre as personagens do título, que é ilustrada nos primeiros minutos, quando vemos seus pés se movendo em sincronia ao ritmo de uma música que cantam juntas, e se tornando mais forte à medida que vemos suas brincadeiras, seus cochichos e os risos divididos (como na sequência que se passa em uma cachoeira). Contribui para isso, como não poderia deixar de ser, a química entre as duas ótimas atrizes, Maria Galant (Mulher do Pai) e a estreante Anaïs Wagner, e a maneira como se protegem (e irritam) mutuamente.

Feminista em sua essência, Irmãs aponta o machismo casual que leva um homem adulto a mandar uma menina fechar as pernas por enxergar em sua postura uma sexualidade ainda inexistente (e que, mesmo se existisse, não lhe daria o direito de interpelá-la) e uma adolescente a ser “mal falada” por ter beijado um garoto em um bar (“Estão falando dele também?”, ela questiona, apontando a hipocrisia geral).

E mesmo limitado por uma verba baixa que por vezes pode ser constatada na tela, é uma obra que indica um caminho promissor para todos os envolvidos.

 

36) Com os lábios rachados pela baixa umidade do ar, Sandro (Leandro Faria Lelo) é um homem que parece seco também em sua alma. Introspectivo ao ponto da grosseria e mantendo qualquer sentimentalismo distante de suas relações sexuais, ele busca algum refresco na piscina do clube também frequentado por seus colegas de trabalho, todos funcionários de uma grande fabricante de grãos, hidratando-se ao mesmo tempo em que aproveita a oportunidade para admirar os corpos definidos dos homens ao seu redor. Mantendo uma relação secreta com Ricardo (Allan Jacinto Santana), com quem se encontra na mata próxima à fábrica, ele tem seu olhar atraído pelo novato Maicon (Rafael Teóphilo), o que desperta fantasias carregadas de sexo e fetichismo.

Refletindo o olhar do protagonista em sua objetificação do corpo masculino (algo raro no Cinema – ou em qualquer mídia -, que prefere manter as mulheres como alvo de escrutínio), o diretor e roteirista Daniel Nolasco preenche a tela com planos-detalhes de sungas apertadas, músculos suados e, sim, pênis eretos, transformando a libido acentuada de Sandro em âncora narrativa – especialmente em sequências que, materializando os sonhos e delírios sexuais do sujeito, ilustram de maneira gráfica e explícita seus anseios. Há, claro, muito couro (algo frequente desde sempre na representação do universo S&M, que também atrai Sandro) e cenas que parecem saídas diretamente de filmes pornográficos, como a que se passa em uma sala de interrogatório e traz um policial com uniforme justo, calça de couro, óculos escuros e uma despreocupação alarmante com seu revólver. No entanto, longe de soarem como mero exploitation, estas passagens são instrumentais ao revelarem a intensa vida interior de um homem cujo rosto parece sempre congelado em uma expressão de indiferença absoluta.

Isto permite, também, que Nolasco e o diretor de fotografia Larry Machado brinquem com a linguagem dos thrillers sexuais (especialmente aqueles produzidos em Hollywood na segunda metade da década de 80 e na primeira da de 90) com luzes marcantes que cobrem os personagens de vermelho e azul, ora romantizando-os, ora sugerindo suas obsessões, e uma subtrama de vingança despertada por ciúme e desejo.

Porém, ainda que praticamente se assuma como narrativa cinematográfica, reconhecendo suas estilizações e convenções, Vento Seco se mantém cimentado no mundo real graças, entre outras, à performance controlada de Leandro Faria Lelo, que, mesmo limitado pela introspecção de Sandro, é talentoso o bastante para evocar sua inquietação crescente e seus sentimentos contraditórios com relação a Ricardo. Além disso, embora tenha se tornado um clichê elogiar a “coragem” de atores que se entregam à nudez e/ou a cenas explícitas de sexo, não há como evitar repeti-lo diante da exposição de Faria Lelo nesta obra, já que, em sua intenção de explorar com honestidade seus temas naturalmente polêmicos, o diretor não foge nem dos fetiches que com toda certeza têm potencial de despertar o incômodo de parte do público, como a urofilia e o snowballing.

Trazendo ainda uma performance brilhante de Renata Carvalho, que serve como centro de bom senso da história e permite a Nolasco acrescentar um elemento político ao filme através do seu sindicalismo, Vento Seco é uma obra cuja relevância se torna ainda maior quando consideramos que, mesmo produzida há mais tempo, está sendo lançada em plena era Bolsonaro, cujas marcas registradas são a homofobia, a transfobia e o ódio de modo geral.

Aliás, neste aspecto, não é apenas o sindicalismo da personagem de Carvalho que atua como elemento político do longa; os corpos nus, os beijos e o sexo também o fazem de forma poderosa e fundamental.

 

37) I Dream of Singapore, documentário singapurano dirigido por Lei Yuan Bin, é um filme que aborda as dificuldades do jovem Al Mamun Feroz, que saiu de Bangladesh para tentar a sorte naquele que é um dos países mais ricos da Ásia. Vivendo em um quarto minúsculo e trabalhando como operário na construção civil, ele acaba se acidentando e, claro, sendo ignorado por seus empregadores. Em seu auxílio vem a ONG “Transient Works Count Too” (“Trabalhadores Temporários Também Contam”), ou TWC2, que lhe oferece abrigo e apoio médico, bem como as condições para, depois de recuperado, voltar para casa.

Ainda que lide com um tema cada vez mais relevante em um mundo cujos movimentos migratórios são vistos pelo sistema capitalista como mão-de-obra escrava para utilizar e jogar fora no primeiro sinal de problema, I Dream of Singapore é uma obra sem foco que jamais se decide entre discutir as questões sócio-econômicas que aborda ou se concentrar na relação entre Feroz e o gentil diretor da TWC2, Ethan Guo, o que limita sua eficiência tanto como denúncia quanto como drama humano. Uma pena.

 

38) “Este filme é intencionalmente sem legendas”, avisa Days em seus primeiros segundos – o que poderia ser um problema em uma produção taiwanesa falada em mandarim. No entanto, ainda que traga alguns poucos diálogos, o novo trabalho do cineasta Tsai Ming-liang os torna irrelevantes no contexto que surgem, sendo mais importante notarmos o tom com que são ditos do que seu conteúdo. Na maior parte dos 127 minutos de projeção, porém, a narrativa transcorre livre de palavras, mergulhando o espectador numa lógica contemplativa que não se preocupa com uma trama, mas com o tempo particular dos personagens e o universal da vida.

Condicionando o público à sua linguagem já desde o primeiro plano, que traz Kang (Lee Kang-sheng, ator de todos os projetos do diretor) reclinado em uma cadeira diante de uma parede de vidro na qual percebemos o leve reflexo de árvores balançando sob a chuva do lado de fora, Days salta entre ele e o jovem Non (o estreante Anong Houngheuangsy), que realiza tarefas cotidianas em seu lar humilde, como lavar verduras e preparar o almoço. Cada uma destas imagens é revelada em planos estáticos com vários minutos de duração, forçando o público a percorrer cada detalhe do espaço (nos quadros mais abertos) ou dos rostos dos atores (nos mais fechados), permitindo que percebamos cicatrizes, ritmos de respiração e a organização de seus pertences pelos cômodos que ocupam.

A mesma abordagem se aplica ao desenho de som, que, resumindo-se essencialmente aos ruídos diegéticos daqueles ambientes, expõem o aumento na intensidade da chuva aqui, o caos do trânsito acolá ou, por contraste, a diferença entre os silêncios de seus cotidianos: em um, sentimos solidão; no outro, opção. Aliás, há um momento em que Ming-liang chega a remover completamente o som (até aquele de fundo, sempre presente), o que, associado à imobilidade do campo, provoca uma sensação de pausa na projeção que, confesso, representou um daqueles momentos mágicos que o Cinema proporciona de comunhão ao forçar as mais de 1.500 pessoas presentes no Berlinale Palast a compartilharem o silêncio. Já em outra cena, o cineasta retrata um tratamento de acupuntura associado a pequenas placas de metal aquecidas que nos levam a sentir o desespero do protagonista por algum alívio às dores constantes que experimenta no pescoço (e que são compartilhadas por seu intérprete, vale apontar).

Mas se há uma passagem icônica em Days, esta reside no encontro dos dois homens, que ocorre em um quarto de hotel e envolve Non aplicando uma massagem a óleo no outro – este, nu; aquele, apenas de cueca. Trata-se de uma cena com mais de 20 minutos de duração e na qual o realizador enfoca todo o processo à medida que o rapaz passa pelas costas, pernas, braços, peito, abdômen e, num desfecho nada surpreendente, culmina num “final feliz” (eufemismo para masturbação até o cliente ejacular). O mais significativo aqui, contudo, é como o potencial erótico é substituído pela delicadeza dos gestos de Non e por uma atmosfera de intimidade confortável, sendo a massagem em si mais importante do que a conclusão que muitos poderiam encarar como a parte mais relevante.

Esta intenção é confirmada nas sequências posteriores, que observam Kang e Non conversando (como prometido, sem legendas) e a gentileza do primeiro ao presentear o rapaz com uma caixinha de música que, tocando o tema de Luzes da Ribalta composto por Chaplin em um ritmo lento, é apreciada pelo que representa: uma tentativa de expressar gratidão ou – quem sabe? – interesse.

Sim, há ocasiões em que Days testa a paciência do espectador; nas demais, todavia, esta é recompensada com a humanidade de seu veterano diretor.

05 de Março de 2020

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Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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