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Dia 7
26) O mestre Roger Ebert costumava dizer que “não importa sobre o que é um filme, mas como ele é sobre o que é” – e o norueguês Drømmer é uma comprovação disso: na superfície, trata-se de uma história sobre a descoberta do primeiro amor por parte de uma adolescente que se encanta pela professora de francês (um tema tratado em centenas, milhares de obras); em sua execução, porém, o que vemos é uma narrativa estruturalmente ambiciosa, emocionalmente complexa e visualmente notável, resultando naquele que, até o momento, é meu título favorito da Berlinale.
Contado em boa parte a partir de flashbacks, Dreams (Sex Love) – como foi traduzido em inglês – tem como protagonista a jovem Johanne (Ella Øverbye), que registra em um diário tudo que vivencia a partir do instante em que conhece uma nova professora, Johanna (Selome Emnetu), enxergando até na similaridade entre seus nomes um sinal do destino. Meses depois, quando tudo parece ter chegado a um fim que ainda desconhecemos, ela decide mostrar o texto para a avó poetisa, Karin (Anne Marit Jacobsen), que se impressiona com a qualidade literária do que a neta produziu, mas também se preocupa com a possibilidade de que esta tenha sido vítima de algum abuso sexual e/ou psicológico, insistindo para que Johanne mostre-o para a mãe, Kristin (Ane Dahl Torp). E não demora até que as discussões sobre as implicações de tudo aquilo ocorram paralelamente ao debate sobre se a garota deve publicar o que escreveu em forma de livro ou não.
Como boa parte da projeção se concentra nos registros íntimos feitos por Johanne como forma de preservar suas experiências e seus sentimentos, o filme em si é frequentemente acompanhado pela narração em off da protagonista – mas se isto de modo geral acabaria denunciando um roteiro preguiçoso, em Drømmer o resultado encanta por servir como uma janela para a sensibilidade particular da jovem, ressaltando sua ingenuidade em certos aspectos e sua maturidade em outros. Além disso, o recurso permite que o longa por vezes se entregue a tangentes que enriquecem seu universo e nossa compreensão acerca da personalidade de Johanne, como, por exemplo, na sequência em que esta anda por Oslo e expõe como cada parte da cidade reflete um estrato social, econômico e cultural – e como isto repercute sobre os costumes de seus habitantes. E mais: ao delimitar o ponto de vista destes flashbacks como sendo o de Johanne, o filme mantém o espectador atento quanto à possibilidade de que a subjetividade da personagem influencie nossa percepção sobre o que realmente pode ter acontecido, já que percebemos, por exemplo, como um gesto romântico que a encantou em um livro acaba sendo reproduzido por sua professora, indicando, talvez, que este tenha sido uma projeção idealizada em vez de algo que de fato ocorreu.
Esta subjetividade também é refletida na abordagem visual do projeto: quando Johanne vê Johanna pela primeira vez, por exemplo, a diretora de fotografia Cecilie Semec posiciona a professora diante da luz do sol, permitindo também que os flares resultantes na lente ajudem a compor uma imagem romântica, com uma aura quase etérea, estabelecendo um contraste com os tons frios que cercam a protagonista. Esta romantização da experiência também é ecoada por planos belíssimos como aquele que traz um bule de chá no qual uma pequena bola formada por folhas é mergulhada, abrindo-se lentamente e criando uma metáfora visual para o despertar amoroso/sexual da moça (por falar em metáforas visuais – e sem incluir spoilers -, há um plano lindíssimo no terceiro ato envolvendo dançarinos em uma escada e que certamente estará entre os momentos mais belos do Cinema em 2025).
Não é difícil imaginar, pelo que já apontei, como Drømmer depende de sua performance central para funcionar – e a jovem Ella Øverbye captura perfeitamente a dualidade de uma adolescente que, por um lado, reflete sobre seus sentimentos com uma maturidade surpreendente, mas, por outro, ainda é uma jovem cheia de explosões emocionais típicas da idade. Em certo momento, por exemplo, Johanne decide aprender crochê para se aproximar da professora através do hobby que esta pratica, mas, ao pedir que a mãe lhe ensine, fica furiosa ao não ser atendida imediatamente. Além disso, a atriz é hábil ao ilustrar a evolução da personagem ao longo da narrativa ao alterar sutilmente a maneira como se posiciona em cena, a segurança com que reage em certos instantes e até mesmo o modo como olha para seus interlocutores. Aliás, igualmente dignos de aplausos são os trabalhos de Ane Dahl Torp e Anne Marit Jacobsen, que estabelecem uma dinâmica divertida entre a mãe e a avó de Johanne enquanto se dividem entre a preocupação e a admiração geradas pelo que esta escreveu.
Outro aspecto admirável da produção reside em sua recusa de trazer a natureza homoerótica da paixão de Johanne para o centro dramático do filme: em nenhum momento Johanne se questiona por ter se apaixonado por outra mulher ou teme que a reação de sua mãe seja negativa em função disso (na realidade, seu temor diz respeito às mentiras que contou para poder ficar tanto tempo fora de casa). Assim, Drømmer trata o assunto com a naturalidade que merece, já que o que importa são os sentimentos da adolescente, não sua orientação sexual; amor é amor e ponto final.
Refletindo também a importância da palavra escrita para aquelas personagens, o roteiro presta atenção particular na articulação de suas ideias, na forma como se comunicam: é divertido, por exemplo, perceber como a avó em determinado ponto pede que a filha admire uma transição elegante que fará na conversa – e os diálogos, diga-se de passagem, são instigantes porque permitem que aquelas pessoas mudem de ideia enquanto debatem certos assuntos em vez de apenas recitarem automaticamente conclusões predeterminadas.
E há, claro, os figurinos de Ida Toft, que encantam pela codificação da trajetória interna de Johanne, que tem a cor verde como elemento principal de suas roupas e aos poucos adota paletas mais variadas, sugerindo como as experiências que viveu lhe ofereceram acesso a um número maior de matizes, como a tornaram mais complexa como ser humano e passaram a permitir que a jovem pintasse a própria vida com mais cores.
Um conceito visual lindo para um filme idem.
27) A evolução da linguagem cinematográfica é um processo contínuo de autodescoberta que, entre outras características, tende a caminhar do óbvio para o sutil e a acumular camadas de sofisticação ao longo do tempo. E como em qualquer forma de arte, a experimentação é o motor dessa evolução – uma experimentação que frequentemente (e por razões compreensíveis) surge em formatos não tão amarrados por necessidades comerciais, como curtas-metragens e videoarte, onde a liberdade criativa não precisa fazer tantas concessões. É nesse contexto que BLKNWS: Terms & Conditions se insere, tendo nascido como uma instalação de videoarte originalmente exibida na Bienal de Veneza de 2019 e sendo agora transformado em longa-metragem pelo diretor Kahlil Joseph.
Empregando como base a “Encyclopédia Africana” concebida por W.E.B. Du Bois e concluída após sua morte por diversos outros autores, o filme busca fazer um registro amplo sobre aspectos políticos, históricos e culturais do continente africano e, principalmente, sobre a diáspora africana, destacando as realizações de indivíduos negros nos mais diversos campos, da Arte à Ciência, do Esporte à Política – e assim como a instalação original, o longa é composto em grande parte por verbetes ilustrados por colagens de vídeos, entrevistas, imagens de arquivo e até elementos ficcionais.
O resultado, claro, é uma estrutura híbrida que, ao misturar documentário e ficção, se converte em uma espécie de vídeo-ensaio sobre a experiência de um segmento da população mundial que, embora maioria em seu continente de origem, foi forçada à diáspora através da escravidão, tornando-se uma minoria política, econômica e social em várias outras partes do mundo, o que reforça a proeza das inúmeras personalidades que ainda assim conseguiram se destacar em seus campos de atuação ao longo das gerações seguintes.
Utilizando desde vídeos que viralizaram na internet até animações — incluindo uma homenagem bonitinha a Hayao Miyazaki, que surge representado em um desenho ao fundo de uma sequência animada que simula um telejornal da CNN -, BLKNWS cria associações instigantes entre memes, informações factuais e narrativas ficcionais, escapando da mera representação e se estabelecendo como um testemunho de talento e da resiliência. Por outro lado, a origem do filme como uma instalação de videoarte jamais deixa de ser óbvia; há várias passagens que soam como uma costura forçada de vídeos independentes, o que pode funcionar bem em uma galeria, mas nem sempre se traduz de forma coesa em um longa-metragem. Em certos momentos, por exemplo, a organização do material parece saltar de um ponto a outro de maneira aleatória, quebrando a fluidez do discurso como um todo.
E a ironia é que a obra parece reconhecer o problema ao tentar rebater possíveis críticas através da inclusão de uma entrevista resgatada que traz a lendária Agnès Varda (um dos seres humanos mais lindos que já pisaram neste planeta) criticando a categorização rígida das obras audiovisuais e pregando que a Arte deve resistir a rótulos e abraçar a hibridez. E ela está certa. No entanto, atrevo-me a acreditar que Varda também apontaria que esta fluidez entre estilos, gêneros e registros deve encontrar algum tipo de equilíbrio e coesão interna própria – um ponto no qual BLKNWS: Terms & Conditions tropeça diversas vezes.
28) Scars of a Putsch (ou Cicatrizes de um Golpe, em tradução livre) é um documentário que compreende como o pessoal e o político estão intrinsecamente ligados - especialmente em um contexto de autoritarismo e repressão. Dirigido por Nathalie Borgers, o filme parte de uma história íntima — a do marido da diretora, um turco que, durante os anos 70, período de intensa turbulência política na Turquia, foi baleado várias vezes pelas forças militares sem qualquer motivo aparente — para explorar as cicatrizes deixadas não apenas em seu corpo, mas em todo o país. Com isso, as marcas físicas do sujeito se tornam um símbolo das feridas abertas pela violência de Estado e pelo golpe militar de 1980, que mergulhou a Turquia em um regime autoritário liderado por Kenan Evren.
Começando com uma recapitulação histórica dos anos 70 na Turquia - um período marcado por perseguições políticas, prisões arbitrárias e assassinatos e durante o qual simplesmente usar o verbo "compartilhar" já era suficiente para ser taxado de comunista (revelador, não?) -, o documentário é hábil ao ilustrar o clima de paranoia e repressão que dominava o país e ao explicar como o golpe de 1980 foi o ápice de uma escalada de violência que deixaria marcas profundas na sociedade turca. Para isso, a diretora emprega uma pesquisa impecável de imagens de arquivo — tanto vídeos quanto fotografias — para retratar a brutalidade do regime de Evren, mostrando como a violência de Estado se tornou, como de hábito, uma ferramenta de controle e opressão usada amplamente por um autoritário de extrema-direita.
Dito isso, é importante observar que Borgers não se limita a contar a história do golpe, viajando também para a Turquia e visitando os locais que marcaram a trajetória do marido, desde a prisão na qual ele foi mantido até a família e os amigos que permaneceram no país. Assim, à medida que investiga os traumas do passado, a diretora resgata a memória de uma geração de ativistas que lutou contra o autoritarismo, destacando como os desaparecimentos políticos e os assassinatos não apenas causaram um trauma imediato, mas impediram que as famílias pudessem iniciar um processo de luto e cicatrização – uma discussão que ecoa, por exemplo, no nosso Ainda Estou Aqui.
Aliás, um dos aspectos mais impactantes do documentário é a maneira como conecta o passado da Turquia com o presente global: além de resgatar a implementação de medidas neoliberais após o golpe — com Evren vendendo o país ao FMI e sacrificando saúde, a educação e os direitos trabalhistas dos cidadãos —, ela traça paralelos entre a paralisia do mundo diante do que aconteceu na Turquia nos anos 80 e a inação atual diante de crises humanitárias, como o genocídio em Gaza ou o cinismo de Trump e Putin ao discutirem abertamente a exploração de recursos naturais na Ucrânia. Além disso, Borgers ilustra o papel da mídia ao relembrar, por exemplo, a invasão de uma partida de futebol por ativistas turcos que tentavam chamar a atenção para os abusos do regime e que acabaram sendo descritos pelos locutores como "torcedores fanáticos" - uma linguagem que diminui a gravidade de suas denúncias. E nem é preciso dizer o quão relevante esta crítica à mídia corporativa e sua cumplicidade com regimes opressivos segue tristemente apropriada hoje em dia.
Por outro lado, se politica e historicamente Scars of a Putsch é notável, de um ponto de vista narrativo não posso deixar de apontar como a decisão de Borgers de se colocar como personagem - abrindo caixas de fotos, digitando no computador e inserindo-se fisicamente em passagens nas quais isto é dispensável – representa uma tendência de certos documentaristas que soa mais como narcisismo do que como uma opção estrutural legítima. Apesar disso, trata-se, como falei, de um documentário poderoso e necessário.
E se não o posiciono como um alerta é porque já estou me resignando à realidade de que a humanidade parece determinada a repetir os mesmos erros que tanto sofrimento causaram no passado.
29) A ideia de associar emoções a fenômenos meteorológicos não é nova no cinema — Akira Kurosawa, por exemplo, fez isso ao longo de sua carreira com maestria. Mas em Yunan, filme que integra a competição deste ano da Berlinale, essa associação é levada a um extremo poético e visualmente impressionante. Co-produção envolvendo diversos países (Alemanha, Catar, Arábia Saudita, Palestina e Jordânia), o filme não apenas usa o clima como metáfora para o estado emocional de seu protagonista, mas também funciona como um estudo sensível sobre a depressão.
Escrito e dirigido pelo jovem ucraniano Ameeer Fakher Eldin, o filme acompanha Munir (Georges Khabbaz), um homem de meia-idade que, sofrendo crises de pânico, vem lidando com uma série de problemas pessoais pesados – incluindo a saúde da mãe, que já não consegue mais reconhecê-lo em função de uma doença neurológica degenerativa. Obviamente passando por uma crise depressiva, ele vê a relação com a namorada se desgastar e acaba pedindo para que esta cuide de seu cachorro temporariamente enquanto viaja para uma ilha remota – e o que logo fica claro para o espectador é que ele pretende cometer suicídio naquele lugar.
E aqui me renderei a um dos piores clichês que um crítico pode incluir em um texto e salientar como a ilha em questão é, por si só, um personagem importantíssimo da obra. Seja ela real ou uma criação digital (ou – o mais provável – uma combinação das duas coisas), o fato é que as paisagens que surgem na tela impactam pela beleza e, sim, pela expressividade, com planos aéreos imponentes expondo longos campos verdes, celeiros, estábulos e, claro, o mar que cerca a ilha, o que é complementado de modo notável pelas casinhas isoladas entre pastos e que criam uma atmosfera ao mesmo tempo serena e melancólica. Além disso, o lugar conta com uma peculiaridade (ao menos no universo do filme): periodicamente, é inundado pela maré alta - um fenômeno que serve como metáfora central para a tormenta interna de Munir. As sequências que acompanham a inundação, diga-se de passagem, são impressionantes: enquanto o vento passa pela relva provocando ondulações rítmicas ecoadas por aquelas vistas sobre a água, o mar gradualmente vai tomando conta da ilha e deixando apenas as construções mais elevadas acima da superfície, transformando assim o isolamento das casas em mais um reflexo da solidão e do estado psicológico do protagonista.
Como força oposta ao clima surge a personagem vivida pela veterana Hanna Schygulla, que encarna a dona da pensão na qual Munir se hospeda. Evitando se tornar mais uma representante da batida convenção envolvendo uma figura mais velha que, com sua sabedoria, ensina o valor da vida ao protagonista da obra, a atriz comunica a essência daquela mulher não através de frases de efeito, mas ao projetar uma presença calma e serena - algo que Munir claramente precisa. Neste sentido, a performance de Kabbhaz é também instrumental: construída com minimalismo e com um número mínimo de diálogos, ela depende da capacidade do ator (que também é músico e compositor) de projetar os sentimentos do personagem através de seus olhos sempre tristes e exaustos – e quando ele pontualmente sorri ou relaxa, é como se uma nuvem escura tivesse se dissipado.
Infelizmente, há um elemento do longa que soa fora de lugar: de tempos em tempos, uma fábula que a mãe de Munir costumava contar quando este era criança é reencenada com o próprio Munir se projetando na história, o que acaba por dissipar a força da narrativa principal. Dito isso, é perfeitamente possível que este seja um problema causado por minha falta de referente no que diz respeito a elementos culturais e/ou históricos específicos e que talvez tragam um significado que, portanto, me escapou por pura ignorância regional.
O que, claro, não elimina a sensibilidade e a eficiência do restante da experiência.
19 de Fevereiro de 2025