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Festival de Berlim 2025 - Dia #08 Festivais e Mostras

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Dia 8

30) É inegável que a seleção competitiva da Berlinale deste ano exibe uma relativa escassez daquilo que poderíamos identificar como "nomes de grife" (aqueles cineastas já estabelecidos e cujas obras são vistas como chamariz na programação dos grandes festivais), sendo uma das poucas exceções em 2025 o romeno Radu Jude, responsável por obras como Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental e o ótimo Aferim!. Conhecido por seu senso de humor atípico, capaz de surpreender o espectador nos momentos mais inesperados, o cineasta frequentemente emprega a graça como ferramenta para dissecar o comportamento humano, expor feridas sociais e analisar as mais diversas dinâmicas de poder que atravessam a sociedade contemporânea – algo que, de uma forma ou de outra, é tema recorrente em sua filmografia e que ele volta a abordar em Kontinental ´25.

Escrito pelo próprio diretor, o roteiro tem início acompanhando um catador de latas - um homem solitário e marginalizado cuja saúde mental está claramente debilitada e que, falando sozinho e praguejando contra um mundo que o abandonou, é seguido pela câmera de Jude enquanto coleta objetos, pede dinheiro e caminha por diversos espaços. E é então que o humor peculiar do realizador começa a se manifestar: subitamente, em primeiro plano, surge um dinossauro animatrônico rugindo que revela como naquele instante o personagem busca latas em um parque temático – e esta contraposição abrupta serve como comentário potente sobre o absurdo da condição humana contemporânea: como podem coexistir, lado a lado, a necessidade de catar lixo para sobreviver e a frivolidade de parques temáticos frequentados por multidões para ver réplicas malfeitas de dinossauros?

Rodado inteiramente em um iPhone e exibindo como consequência uma qualidade particular de imagem digital (uma estética mais "lavada", com cores pálidas, que foi propositalmente mantida mesmo após o processo de pós-produção), o longa emprega esta característica para ressaltar a natureza cotidiana do que retrata ao despertar um sentimento de familiaridade no espectador, tão habituado a registrar (e consumir) imagens capturadas por telefones celulares. Ao mesmo tempo, ao filmar à distância, aparentemente de forma clandestina nas ruas, Jude capta a invisibilidade do personagem à medida que todos que cruzam seu caminho desviam o olhar, salientando assim a brutalidade e a desesperança de sua condição.

Contudo, já no primeiro ato o filme deixa claro que o catador de latas é apenas o ponto de partida de seu foco principal, já que, prestes a ser despejado pela oficial de justiça Orsolya - a verdadeira protagonista da obra –, o sujeito pede alguns minutos para recolher seus pertences e, enquanto os policiais aguardam do lado de fora, comete suicídio ao se enfocar com um fio de arame. E é claro que aqui novamente o senso de humor macabro de Jude retorna enquanto os oficiais tentam prestar os primeiros socorros em uma cena reminiscente de um episódio particular de The Office que os fãs da série reconhecerão imediatamente.

Surpreendente também ao utilizar referências culturais inesperadas como a menção do nome de Hirayama, protagonista do lindíssimo Dias Perfeitos, para descrever o homem morto (o que comprova a força do filme de Wim Wenders ao já ter seu protagonista transformado em código para um tipo específico de personagem apenas um ano desde seu lançamento), Kontinental ´25 segue um padrão narrativo comum na obra de Jude e no chamado Novo Cinema Romeno ao se desenvolver através de longos planos estáticos que registram conversas triviais entre os personagens. Esta abordagem, claro, permite que o espectador observe o comportamento de cada indivíduo no quadro - mesmo aqueles em silêncio - e extraia significado das interações mais banais, que acabam por revelar muito sobre suas personalidades e visões de mundo. A protagonista, por exemplo, que expressa culpa pelo ocorrido, busca consolo no marido em certo momento apenas para vê-lo oferecer um gesto de apoio rápido antes de demonstrar interesse sexual – um comentário afiado sobre o egoísmo masculino, sexismo e a objetificação sofrida por aquela mulher mesmo em meio a uma crise profissional e de consciência. Ao mesmo tempo, fica claro como a personagem desenvolve certa fascinação mórbida pelos detalhes da morte do catador de latas, já que ela repete obsessivamente o que testemunhou para várias pessoas – e, por mais que genuinamente acredite ter tentado ajudar o homem dentro de suas possibilidades, não deixa de ser revelador como ele acaba se transformando em um modo de Orsolya chamar a atenção para si mesma.

Privilegiando o subtexto em detrimento do texto explícito, o roteiro também evita a pregação escancarada ao comunicar suas mensagens de modo indireto e inteligente: em certo momento, por exemplo, a protagonista, conversando sobre os bairros da cidade, comenta que se mudaria caso tivesse condições - uma fala aparentemente casual que, no entanto, revela uma proximidade socioeconômica muito maior com o homem que despejou do que com os donos do prédio. Esta, claro, é uma realidade que a classe média frequentemente se recusa a aceitar, iludindo-se sobre sua posição e funcionando, muitas vezes, como instrumento para a manutenção do poder da elite econômica. Não é por acaso que o despejo visa liberar o terreno para a construção de um hotel de luxo, já que pessoas como a oficial de justiça e os policiais acabam por executar o "trabalho sujo" dos ricos, perpetuando uma contradição fundamental da sociedade capitalista que muitos são incapazes (ou não desejam) enxergar – e sua tentativa de "ajudar" o catador, portanto, trazia uma demagogia inata por estar inserida na própria lógica do sistema que a obriga a agir como agente da mesma despossessão que procura suavizar.

Mas as ambições temáticas de Radu Jude não param por aí, envolvendo também questões essenciais como a xenofobia: imigrante de origem húngara, a protagonista é até vista com naturalidade por já ter passado por um longo processo de assimilação, mas isto não ocorre com um ex-aluno que, também húngaro, trabalha como entregador e estampa em sua bicicleta a frase "Eu sou romeno" numa tentativa desesperada de evitar a agressão de motoristas que hostilizam trabalhadores imigrantes, tentando até mesmo atingi-los com seus carros. Com isso, o filme expõe o fenômeno mais amplo do nacionalismo crescente em diversas partes do globo – não só na Europa, mas também no Brasil e nos Estados Unidos, nações paradoxalmente construídas por processos migratórios históricos e que inacreditavelmente parecem ter regredido como sociedade graças ao avanço de uma extrema-direita intolerante e violenta.

Não é à toa que ao longo do filme a protagonista (vivida de modo excepcional por Eszter Tompa) busca incessantemente por consolo ou respostas em conversas com figuras que incluem padre, marido, colegas, amiga e o ex-aluno, recebendo apenas variações da mesma formulação vazia: "a culpa não foi sua" – uma ausência de respostas significativas que é reflexo da incapacidade inerente ao sistema capitalista de oferecer soluções ou mesmo um sentido para a desigualdade brutal, a crueldade e a desumanização que ele próprio gera.

31) Remetendo a outra experiência marcante da Berlinale do ano passado – o documentário francês Nossos Corpos, de Cléa Simon, que explorava com sensibilidade um hospital parisiense dedicado exclusivamente à saúde feminina em suas mais diversas facetas (de consultas rotineiras a tratamentos oncológicos e transições de gênero) –, em 2025 assisti a Palliativstation (Unidade de Tratamentos Paliativos), notável documentário dirigido pelo alemão Phillip Döring. Com uma duração ainda mais extensa, ultrapassando as quatro horas, a obra, como o título anuncia, dedica-se a acompanhar o cotidiano de uma unidade de cuidados paliativos, um ambiente raramente exposto com tamanho acesso no cinema do gênero.

Introduzindo seu universo com uma elegância narrativa notável ao sinalizar desde o início que estamos visitando espaços íntimos e usualmente mantidos atrás de cortinas, o filme abre a projeção revelando portas entreabertas e permitindo que entrevejamos leitos nos quartos que compõem as dezesseis unidades do departamento, criando uma sensação de observação respeitosa e nada sensacionalista. Essa introdução culmina na escuta de uma conversa entre um médico (cujo rosto vemos) e um paciente (que permanece fora de campo) e durante a qual a linguagem empregada já revela um cuidado imenso: ao invés de uma sentença direta sobre a ausência de cura, o médico explica que chegaram a um ponto em que não é mais possível "fortalecer" o paciente – um eufemismo delicado, porém claro, para comunicar a impossibilidade de recuperação e o fim das opções terapêuticas.

Ao longo de suas quatro horas, Palliativstation nos apresenta aliás a diversos pacientes que representam idades e condições variadas: testemunhamos, por exemplo, a trajetória de um senhor cuja idade avançada é sublinhada pela presença dor irmão caçula, também idoso (com mais de 80 anos); acompanhamos uma senhora que, durante sua internação, perde o marido com quem foi casada por décadas; e conhecemos a história particularmente trágica de uma mulher de apenas 39 anos cujos danos irreversíveis não decorrem diretamente do câncer que enfrentou, mas da radioterapia utilizada em seu tratamento, resultando em hemorragias que tornam sua condição terminal. Indo e voltando entre estes casos, a narrativa transita fluidamente entre esses indivíduos, permitindo que acompanhemos suas evoluções (melhoras e pioras) ao longo do tempo e construindo um retrato tocante de experiências no trecho final da vida.

Embora a presença dos pacientes seja central, claro, o filme concentra grande parte de seu foco na equipe médica, especialmente no chefe da equipe – um homem relativamente jovem (por volta de 40 anos) cuja humanidade e dedicação se revelam profundamente comoventes; seu envolvimento transcende as obrigações profissionais, alcançando uma dimensão emocional genuína ao lidar com aqueles que se encontram sob seus cuidados. Esta dedicação é ilustrada pelo documentário de diversas maneiras: nas reuniões de passagem de plantão, onde os casos são discutidos em detalhe; no treinamento de estagiários e na integração de novos médicos à dinâmica da equipe; e, de forma marcante, na interação direta com os pacientes. Um exemplo notável é o esforço que ele faz para que uma paciente apavorada realize um exame de imagem dentro do hospital, evitando o deslocamento externo – um gesto de carinho que, embora demande tempo e recursos extras, demonstra uma empatia extraordinária.

As discussões da equipe, aliás, frequentemente extrapolam as questões puramente clínicas e terapêuticas: há uma preocupação constante com o estado psicológico dos pacientes e de seus familiares, que, não menos importante, contam com acompanhamento psicológico oferecido pelo hospital. Além disso, os próprios médicos se envolvem ativamente nesse cuidado, perguntando sobre os sentimentos, validando as angústias e reconhecendo o impacto emocional do processo – um trabalho muitas vezes complicado pela barreira linguística, exigindo o uso de tradutores digitais que fragmentam a comunicação e tornam o esforço em estabelecê-la ainda mais digno de admiração.

Retratando o cotidiano da clínica em seus detalhes mais significativos, o longa continuamente revela a importância de cada gesto - e paciência infinita da equipe de enfermagem ao caminhar lentamente com pacientes debilitados, ligados ao soro, um passo de cada vez, dia após dia, exemplifica a dedicação que define (ou deveria definir) a atuação na área da saúde – especialmente dos enfermeiros, que frequentemente assumem o trabalho mais extenuante. Além disso, é também interessante observar a flexibilidade adotada no tratamento em função dos contextos de cada paciente: em certos momentos, por exemplo, a equipe aponta como pode ser válido permitir que um paciente realize uma atividade teoricamente não recomendada ao reconhecer que o bem-estar proporcionado por esse pequeno prazer pode ser mais benéfico do que um rigor terapêutico cujo prognóstico já é nulo. E esta compreensão da necessidade de, por vezes, abrir mão de protocolos estritos em nome da qualidade de vida restante é profundamente humana – e neste sentido entram também as discussões éticas sobre a manutenção de medicamentos sem eficácia comprovada, apenas para preservar a esperança do paciente: a decisão de manter um remédio que não causa efeitos colaterais significativos - mesmo sabendo de sua inutilidade terapêutica - torna-se importante porque retirá-lo sinalizaria o abandono completo da esperança de cura.

Consciente da densidade emocional do material, Döring emprega uma estratégia curiosa e eficaz: de tempos em tempos, a câmera nos retira do ambiente hospitalar, oferecendo breves respiros visuais do mundo exterior: árvores, um pássaro sobre uma cerca e o movimento da rua, por exemplo. Estes breves intervalos, que duram poucos segundos a cada 40 minutos de mergulho no cotidiano do hospital, funcionam como um lembrete da existência para além daquelas paredes e se estabelecem como uma pausa fundamental para que o espectador processe a intensidade do que testemunha.

E é uma experiência por vezes extenuante de um ponto de vista emocional: entre outras coisas, é impossível evitarmos divagações, por exemplo, sobre o passado daquelas pessoas – como eram cinco anos, um ano, seis meses antes? A menção de uma paciente que fazia trilhas até o ano anterior evoca a imagem de indivíduos saudáveis, ativos, completamente alheios ao tormento que enfrentariam poucos meses depois; a fragilidade da existência e nossa tendência de evitar reconhecê-la se tornam palpáveis e, portanto, angustiantes. Aliás, se há uma conclusão lógica que surge destas reflexões é a responsabilidade do Estado em oferecer também cuidados paliativos dignos, focados não na cura impossível, mas na humanidade do processo de morrer – em suavizar a dor, oferecer conforto e garantir que a partida (palavra que particularmente uso a contragosto por sua implicação de uma continuidade na qual não acredito) seja o menos traumática possível.

Capturando momentos cujo peso rivaliza apenas com a importância de compreendermos plenamente sua inevitabilidade, Palliativstation reconhece a importância, por exemplo, de investir alguns minutos em uma passagem como a que traz um enfermeiro organizando os pertences de um paciente recém-falecido – seus últimos meses de existência resumidos em uma caixa. Porém, acima de tudo, o filme comove profundamente não apenas por expor a vulnerabilidade humana no fim da vida, mas por celebrar a diferença que um tratamento verdadeiramente humano pode fazer: não se trata simplesmente de ministrar medicamentos ou procedimentos, mas da disposição em sentar ao lado do paciente, segurar sua mão, ouvir seu lamento ou simplesmente compartilhar com ele o silêncio – gestos que oferecem consolo em momentos de dor, medo e confusão. Ao longo de suas quatro horas, passamos a nos importar genuinamente com aqueles indivíduos que estão prestes a deixar de ser e, igualmente, com aqueles que dedicam suas vidas a cuidar deles. É um testemunho doloroso, mas belíssimo, da humanidade em ação.

32) Exibido na Berlinale como parte da seção Panorama, Confidente é uma produção turca que, escrita e codirigida por Guillaume Giovanetti e Çagla Zencircique, se apoia em um artifício que em mãos incompetentes normalmente se revela como simples muleta narrativa: um herói – ou, neste caso, heroína – que passa quase todo o filme em conversas telefônicas (como no fraco Chamada de Emergência, nos eficientes Culpa e Por um Fio e no excelente Locke). O problema é que estruturas como esta exigem uma segurança considerável e, sobretudo, uma direção inventiva para evitar que o resultado final soe como um mero amontoado de diálogos – e a dupla de diretores de Confidente definitivamente não supera estes obstáculos.

Girando em torno de Arzu (Saadet Aksoy), uma mulher que trabalha em uma linha de telessexo na Turquia, o roteiro logo revela que esta é divorciada e vive sob a ameaça constante de perder a guarda do filho caso sua profissão seja descoberta. Aliás, uma das primeiras (e lamentáveis) escolhas do longa é povoar essa empresa majoritariamente com mulheres de meia-idade, reservando a juventude e a beleza convencional exclusivamente para a protagonista e fazendo assim um julgamento escancarado sobre o perfil das mulheres que os diretores acreditam serem as únicas que aceitariam este tipo de emprego – um preconceito que é ressaltado pelo fato de Arzu exibir uma limitação física que, sem desempenhar qualquer papel na narrativa, é obviamente fruto da percepção de que apenas um problema físico explicaria sua presença ali.

Curiosamente, o filme até ensaia um começo promissor ao sugerir como a natureza do trabalho daquelas mulheres não é o de meramente vender sexo virtual, mas sim fantasias, mostrando a habilidade daquelas profissionais em adaptar suas personas às necessidades e fetiches específicos de cada cliente. Em certo momento, por exemplo, um cliente tenta "converter" a protagonista, buscando afastá-la daquela “vida” (as aspas estão conotadas no seu tom de voz), e ela o mantém na linha ao perceber que o próprio ato da conversão é o fetiche do sujeito.

Infelizmente, esta promissora linha temática é rapidamente abandonada, já que, ignorando potenciais discussões sobre os contextos político, religioso e social específicos da Turquia (um prato cheio considerando a profissão da protagonista), o filme opta por investir em um suspense raso e repleto de clichês desencadeado por um evento catastrófico: um terremoto. Durante uma ligação, um adolescente com quem a protagonista conversava fica preso sob os escombros e - não há suspensão de descrença que resista aqui – descobre que o único botão funcional de seu telefone danificado é o de rediscagem, forçando-o a ligar para a linha de telessexo. A partir daí, Arzu assume a missão de ajudá-lo a conseguir resgate.

Mas a coisa piora com a introdução de um elemento burocrático absurdo: aparentemente, no sistema turco retratado pelo filme, apenas um promotor específico tem a autoridade para iniciar os procedimentos de resgate em larga escala após o desastre – e, vejam a coincidência!, a protagonista havia, em uma ligação anterior, entreouvido justamente a voz desse mesmo promotor enquanto conversava com outro cliente, descobrindo assim que ele frequentava uma casa de orgias. Utilizando essa informação (e sendo, aparentemente, a única pessoa capaz de contatar o promotor em meio ao caos nacional), ela o localiza para que ele possa autorizar o resgate, envolvendo-se, no processo, em uma teia de conspirações, traições, revelações e até um possível assassinato – tudo isso sem sair de sua linha telefônica. E mais: mesmo com um número reduzidíssimo de personagens, o filme ainda tenta tratar a revelação do grande vilão da história como algo surpreendente, aparentemente ignorando que ao reduzir as possibilidades a basicamente duas pessoas qualquer tentativa de suspense se torna absolutamente ridícula.

Além da inverossimilhança da trama, Confidente recorre também a clichês dramáticos para tentar gerar conflitos pessoais entre personagens como a colega de trabalho que literalmente vira as costas para a protagonista em um momento de necessidade (girando a cadeira, para enfatizar a rejeição) e um chefe que assedia Arzu e cujo comportamento o próprio filme tenta suavizar ao revelar um suposto lado romântico (ele compra passagens aéreas sem data fixa para que fujam juntos – a ideia de “romance” dos roteiristas não se diferencia do assédio).

Neste contexto, não há o que Saadet Aksoy possa fazer – e nem vou dizer que a atriz se esforça, já que não há nada no roteiro ou na mise-en-scène que possa desafiá-la de fato. Como se não bastasse, o filme ainda tenta se vender como politizado ao inserir monólogos artificiais sobre empoderamento feminino, sexismo e patriarcado – e embora esses temas pudessem, em tese, ser relevantes no contexto do telessexo, a forma como são introduzidos (com a narrativa parando para que a protagonista discurse) soa forçada, condescendente e, em última análise, ridícula, falhando em fortalecer a personagem ou apresentar argumentos genuinamente interessantes.

Finalmente, Confidente recorre a um dos clichês mais batidos e reveladores da falta de propósito de um filme: o plano derradeiro em que o protagonista olha diretamente para a câmera. Arrisco dizer que é uma regra quase infalível: em 99% das ocasiões em que uma obra se encerra desta maneira, a quebra da quarta parede se torna apenas um indicativo de que o diretor não sabia como concluir a história ou de que não tinha nada a dizer, empregando a tentativa de criar uma cumplicidade ou um confronto final através desse olhar direto como disfarce para a falta de ideias.

E assim os diretores desta porcaria comprovam como são capazes de errar do primeiro ao último segundo de projeção.

33) When Lightning Flashes Over the Sea, uma coprodução entre Alemanha e Ucrânia dirigida pela cineasta Eva Neymann, parte de uma compreensão fundamental – e talvez essencial – do cinema: a de que as pessoas são, em si mesmas, fascinantes. A simples presença de um rosto preenchendo a tela já constitui uma narrativa; cada ruga, cada microexpressão, cada traço físico carrega consigo uma história. E o filme de Neymann abraça essa premissa com uma sensibilidade notável, encontrando momentos de profunda humanidade na observação do cotidiano.

Para alcançar este objetivo, a diretora emprega estratégias visuais variadas. Há, por exemplo, passagens no documentário em que a câmera captura indivíduos que aparentemente desconhecem estar sendo registrados: uma senhora tomando café na sacada enquanto observa o trânsito; um casal idoso em uma praça; uma mãe flagrada pela janela enquanto carrega e canta para seu bebê. São instantes como esses (entre outros que virão) que comovem pela simples manifestação da humanidade em sua forma mais pura; ver a vida vivida na tela, registrada por um olhar sensível, é, por si só, tocante e fascinante – algo que sempre remete ao trabalho do mestre Eduardo Coutinho, o maior documentarista da história do gênero, que compreendia perfeitamente a potência narrativa contida no retrato de pessoas comuns. Ou “comuns”, pois todos são especiais de algum modo.

Sem se preocupar em estruturar seu filme em torno de narrativas convencionais com começo, meio e fim, Neymann direciona sua câmera para diferentes indivíduos, detendo-se brevemente em cada um deles e capturando fragmentos de suas vidas. Nesses recortes, as pessoas falam sobre o passado ou simplesmente vivem seu presente cotidiano: a sequência inicial, por exemplo, acompanha um menino pelas ruas de Odessa utilizando uma teleobjetiva que o observa à distância - e a montagem, através de cortes secos, sugere um registro extenso do qual foram extraídos momentos pontuais: o menino caminha, brinca, interage brevemente com outros. No início, sem conhecer a proposta do filme, o espectador pode ser levado a crer que a história será centrada no garoto, questionando sua origem e seu destino à medida que algumas informações tangenciais se tornam evidentes (ele parece morar em um abrigo) e o simples fato de vagar sozinho pela cidade sugere uma vida instável. Porém, o foco da documentarista não reside aí; o que interessa é a pura existência daquele menino.

E assim o filme prossegue, saltando de um personagem a outro e adaptando seu estilo a cada um: em determinado momento, a câmera, antes distante e móvel, torna-se fixa e estática dentro da cozinha de um restaurante, observando a cozinheira ao longo de um dia enquanto a mudança na luz indica a passagem do tempo e a mulher cozinha e fala sobre os mais variados assuntos – a saudade do filho, o passado, frustrações, sonhos –, que são novamente apresentados através de cortes secos que nos levam de um tema a outro. Em seguida, o foco se desloca para uma senhora idosa que vive sozinha, cercada apenas por dúzias de gatos: ela relata a perda do filho e do marido, e em meio à sua história, surgem momentos de uma poesia inesperada, como o fato de, apesar de sua visão extremamente debilitada (ela é praticamente cega), ela enxergar perfeitamente em seus sonhos.

Fica claro, portanto, que este não é um filme de trama e talvez nem mesmo um filme de tema: se em Edifício Master (para voltar ao mestre Coutinho) a âncora era o próprio edifício, aqui é a cidade de Odessa que surge como único denominador comum. Evitando a editorialização explícita (embora a escolha do que mostrar e do que cortar seja, em si, um ato editorial), Neymann evita uma condução premeditada das reflexões de seus retratados; aquelas pessoas falam o que consideram importante (ao menos naquele instante), evidenciando a intimidade e o conforto estabelecidos com a cineasta através da própria fluidez de seus monólogos. Essa confiança é palpável, por exemplo, em uma sequência particularmente doce com outra senhora idosa: enquanto fala sobre o passado (novamente com cortes secos indicando a longa duração da conversa), ela se acomoda em um sofá, deita a cabeça em um travesseiro e continua a divagar, até que, naturalmente, adormece. E o simples ato de observar essa transição – da fala à sonolência e ao sono – é belo e tocante.

Evidentemente, o fato de o filme ser rodado em Odessa, na Ucrânia, traz camadas adicionais de significado no contexto atual (e embora um conhecimento prévio sobre a história política da cidade possa enriquecer a leitura, ele não é estritamente necessário); a simples consciência da guerra e do sofrimento que assola o país hoje já confere às imagens um subtexto político e histórico poderoso. Quando vemos ruínas ou quando a câmera, observando um prédio à noite, capta o som de sirenes de alerta para um possível ataque aéreo, a tensão subjacente se torna óbvia - mas mesmo em meio a essa realidade opressiva, Neymann registra a persistência da natureza humana ao filmar uma festa de casamento. A vida continua, a humanidade persevera e as pessoas encontram formas de celebrar e sorrir mesmo sob constante medo e tensão.

Já em outra sequência marcante, um senhor bastante idoso relembra as pessoas que conheceu e que já morreram, mas também o nascimento de seus filhos gêmeos. Com uma saúde visivelmente frágil e a respiração difícil, ele fala da mãe – e, ao fazê-lo, evoca uma reflexão sobre a percepção do tempo e da idade: tendemos a ver as pessoas idosas como se sempre tivessem sido assim, congeladas naquela fase da vida, esquecendo que tiveram juventude, infância, que tiveram mães. Para elas, no entanto, o passado – o nascimento dos filhos, o cuidado materno – parece ter acontecido ontem; aquele velhinho foi, em primeiro lugar, um filho, uma criança; se sua mãe pode parecer estar num passado muito distante para quem o vê hoje, para ele a mãe é uma lembrança tão presente quanto seu mais recente aniversário. A vida, percebemos através de seu relato e de sua própria presença, passa com uma rapidez estonteante: em um estalo, décadas se foram e memórias de infância coexistem com a realidade presente dos filhos adultos, dos netos, da própria finitude que se aproxima.

Em sua trajetória completa, a vida (se tivermos a sorte de vivê-la por muito tempo) inevitavelmente termina em um anticlímax, na perda gradual daqueles que amamos e que nos acompanharam ao longo das décadas. E é justamente depois desse mergulho melancólico (e lindo) na natureza de nossas existências que Eva Neymann insere um plano final de uma beleza imensa, quando aquele mesmo senhorzinho, após compartilhar suas memórias e dores, olha diretamente para a câmera e oferece um pequeno sorriso. Esse sorriso, singelo e inesperado, torna-se a síntese do filme: um gesto de carinho profundo pelas pessoas retratadas e pela própria trajetória humana, com todas as suas dores, alegrias e, claro, sua perseverança.

20 de Fevereiro de 2025

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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