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Dia 9
35) Durante a cobertura da Berlinale de 2018, um dos filmes que discuti com maior empolgação foi Tinta Bruta, dirigido pelos brasileiros Marcio Reolon e Filipe Matzembacher e que construía uma atmosfera densa, carregada e pontuada pela sexualidade, pela sensualidade e pelo tesão, explorando a maneira como os personagens lidavam com o desejo e as tensões que surgiam a partir disso. Todos esses elementos, curiosamente, estão presentes também em Ato Noturno, novo trabalho da dupla - e que é sem dúvida um dos melhores longas que vi no festival deste ano.
Roteirizado pelos próprios diretores, o filme inicialmente nos apresenta a dois atores teatrais: Matias, interpretado pelo estreante Gabriel Faryas, e seu colega de apartamento e de palco Fábio, vivido por Henrique Barreira. Prestes a estrearem um espetáculo teatral que, em sua concepção, investe pesadamente na tensão entre os atores em cena – uma receita fadada ao desastre, já que a diretora da peça estimula constantemente o conflito entre eles por acreditar que isso irá se transferir para as performances -, Matias e Fábio ainda assim mantêm uma relação de amizade e apoio mútuo e sem qualquer envolvimento romântico ou sexual (Matias é gay, enquanto Fábio é retratado como um típico mulherengo). Aliás, é a fama de conquistador deste último que atrai a atenção de uma produtora de elenco em busca de um ator com esse perfil para uma grande série a ser filmada em Porto Alegre (onde a história se passa), resultando em um convite para um teste – o que desperta ciúmes nos colegas de elenco do sujeito, incluindo Matias, que também desejava uma oportunidade na produção.
E é então (e não se preocupem, não há spoilers: tudo isso representa a base da trama) que Matias conhece Rafael (Cirillo Luna) através de um aplicativo de encontros e o que inicialmente seria uma noite de sexo casual evolui para uma semente de relação romântica bem no instante em que suas carreiras públicas começam a deslanchar. Isto, claro, pode trazer inconvenientes profissionais, já que Rafael é candidato à prefeitura de Porto Alegre e um relacionamento homossexual seria visto com preconceito por seus apoiadores.
Assim como em Tinta Bruta, este Ato Noturno é hábil ao mergulhar o espectador em uma atmosfera pesada, incorporando elementos de neo-noir particularmente através de sua trilha sonora instrumental, que constantemente evoca a sugestão de um desastre iminente, e da ambientação predominantemente noturna, com cenas em parques e ruas escuras de Porto Alegre. Neste sentido, há uma sequência particularmente notável que, situada em um parque no qual vemos vários homens fazendo sexo publicamente, emprega a trilha e a fotografia para criar um tom quase fantasmagórico, uma sugestão de algo ao mesmo tempo idílico e assustador. A atração pelo sexo em público, diga-se de passagem, se estabelece como um fetiche crescente entre Matias e Rafael, combinando tesão e tensão diante da possibilidade de serem flagrados a qualquer momento.
Mais uma vez demonstrando uma habilidade admirável em transportar o espectador para o estado mental e emocional dos personagens, os cineastas criam, por exemplo, um inteligente plano aéreo que inicialmente mostra, à distância, o prédio em que Matias mora e o revela dançando na sala – e à medida que a câmera se aproxima, os sons da cidade (sirenes policiais, o caos urbano) invadem a trilha sonora, até então dominada pela música diegética que Matias ouvia, ilustrando como o personagem, mesmo em um momento de prazer solitário e introspectivo, está inserido em um universo que pode, a qualquer instante, invadir sua vida trazendo violência e desordem. Já em outro momento, durante uma apresentação da peça, Reolon e Matzembacher têm o cuidado de salientar o olhar de Rafael que, da plateia, encara o parceiro no palco com uma expressão que transmite toda a complexidade de seus sentimentos, do afeto à percepção de que aquele envolvimento pode trazer a ruína de ambos. Graças a passagens como estas e às atuações excelentes do elenco, a relação entre os personagens, embora turbulenta (devido ao contexto em que se encontram e aos riscos inerentes ao fetiche que compartilham), torna-se algo com que o espectador passa a se importar, lamentando a possibilidade de que possam vir a perder um ao outro.
Enquanto isso (e também como em Tinta Bruta), o sexo é tratado com franqueza e abertura pelo filme, não chegando a ser explicitamente gráfico, mas ainda assim demonstrando ousadia para os padrões do cinema comercial. Isso é fundamental para que o espectador perceba a dimensão da atração que aqueles dois homens sentem um pelo outro – e que, somada ao seu fetiche por exposição, se intensifica progressivamente à medida que os riscos se tornam maiores e eles passam a ter mais e mais a perder.
Para completar, o uso de cores no filme – seja pela fotografia, pela direção de arte ou pelos figurinos – é outra prova da inspiração dos realizadores. É fascinante, por exemplo, observar a associação consistente de Matias com a cor vermelha, que surge em suas roupas e em seus objetos pessoais (casaco, camisa, fone de ouvido, capa de celular e por aí afora): ligada universalmente ao sexo, ao tesão e, paradoxalmente, ao perigo (uma dualidade que, como sempre ressalto em meus cursos, revela muito sobre a natureza humana), a cor permite que o filme faça jogos semióticos brilhantes – e em determinado momento, quando uma produtora de elenco aconselha o protagonista a não se expor tanto, sugerindo que o mistério beneficia a carreira de um ator, Matias comparece a um teste vestindo um casaco branco acinzentado, mas, ao deixar o local, imediatamente o retira, revelando o vermelho por baixo que, claro, representa sua essência real.
E se Tinta Bruta demonstrava também o talento invejável da dupla de diretores para encerrar seus filmes, trazendo um dos melhores planos finais que o cinema viu em 2018, proeza similar é repetida aqui, já que Ato Noturno certamente traz uma das melhores imagens de encerramento que veremos em 2025.
Obra fascinante sobre obsessão, tesão, paixão e, talvez, sobre a excitação inerente a um desejo de autodestruição que raramente associamos ao prazer, este é um filme que mantém Filipe Matzembacher e Marcio Reolon como dois dos mais instigantes realizadores do cinema brasileiro contemporâneo.
36) Único documentário a figurar na competição oficial da Berlinale deste ano, Timestamp, uma coprodução envolvendo França, Luxemburgo, Holanda e, crucialmente, a Ucrânia, é uma obra cuja essência pode ser resumida pela dedicação feita pela diretora Kateryna Gornostai ao seu irmão, morto durante a guerra entre Rússia e Ucrânia. Inserindo-se em um crescente corpo de obras documentais que buscam retratar o conflito, muitas das quais já comentei nas últimas coberturas da Berlinale e de Cannes, Timestamp se distingue graças à sua abordagem focada nas escolas do país e, consequentemente, na maneira como crianças e adolescentes foram e continuam sendo afetados pela guerra.
Para construir o retrato mais abrangente possível, Gornostai intercala passagens capturadas em diversas cidades ucranianas: algumas que foram ocupadas e posteriormente liberadas, outras que permanecem sob ocupação, algumas próximas ao front de batalha e outras bem mais distantes deste. Esta variação geográfica permite, claro, que observemos de forma palpável como a proximidade da linha de combate impacta diretamente a vida das pessoas – uma constatação que, embora possa parecer óbvia em teoria (cidades mais próximas do front exibem maior grau de destruição, por exemplo), revela-se chocante ao ser testemunhada na prática, no cotidiano daqueles que ali vivem.
Particularmente eficaz ao evocar a atmosfera de um país sob ataque, concentrando-se em como esta realidade transforma o dia a dia das gerações mais jovens, o filme utiliza o sistema educacional como fio condutor da narrativa: com isso, uma simples festa escolar, evento tão corriqueiro na vida de crianças em tempos de paz, assume um caráter sombrio quando é abruptamente interrompida por sirenes de alerta para um possível ataque aéreo, obrigando todos a se dirigirem a abrigos subterrâneos enquanto aguardam o perigo passar para que, então, retomem a celebração. Com qualquer possibilidade de normalidade fraturada pela necessidade de treinar as crianças para evacuações de emergência ou de ensiná-las a reconhecer objetos perigosos (como um ursinho de pelúcia ao qual uma bomba foi amarrada), o longa ilustra a tragédia que se tornou a realidade não só das crianças, mas dos adolescentes – e quando vemos a cerimônia de formatura de cadetes da marinha, com todos aqueles rostos ainda infantis já se preparando para o combate, é impossível não lamentar o que a vida lhes reservou. Do mesmo modo, perceber como há escolas inteiras funcionando em estações de metrô, buscando assim a segurança do subterrâneo, reforça uma lógica perturbadora de adaptação a um estado de sítio permanente – e é igualmente angustiante notar como as sirenes de ataque antiaéreo, antes um sinal de pânico imediato, tornam-se parte da paisagem sonora a ponto de as pessoas mal acelerarem o passo ao ouvi-las.
E é evidente que o fato de se acostumarem a esta realidade não a torna menos triste; pelo contrário, é algo que acentua a tragédia. Nas cidades mais próximas ao front, por exemplo, onde as aulas presenciais foram suspensas, acompanhamos crianças tendo aulas de educação física online e uma professora lecionando matemática em um quadro negro improvisado em seu quintal enquanto transmite a aula para seus alunos. Mas talvez a imagem mais comovente desta adaptação forçada seja a de uma adolescente vestida para sua formatura de ensino médio, com maquiagem e vestido longo, enquanto se senta sozinha em frente a um computador para participar da cerimônia online – uma cena que evoca as privações e adaptações vividas durante a pandemia e o impacto dessas rupturas na vida dos jovens.
Outra consequência lamentável desse contexto, e que o filme não deixa de registrar, é o fomento do nacionalismo e do patriotismo exacerbados, que acabam sendo ativamente incutidos nas crianças através de interrupções nas aulas para momentos de “silêncio nacional” e do ensino de canções patrióticas. Como resultado, vemos crianças e adolescentes expressando o desejo de se alistar para lutar, incluindo uma jovem de cerca de 14 ou 15 anos declarando sua aspiração de se tornar sniper – além, claro, de acompanharmos também crianças engajadas em jogos infantis que são, na verdade, treinamentos militares disfarçados. Essa militarização da infância e da juventude insere-se, evidentemente, em uma longa história de luta pela identidade nacional ucraniana, que remonta a confrontos com o poder centralizador soviético e a tentativas de supressão da cultura local, mas é óbvio que em um período de guerra, essa postura defensiva em relação à identidade nacional se intensifica, correndo o risco de se transformar em um nacionalismo perigoso associado ao autoritarismo e à xenofobia.
Neste aspecto, o grande mérito de um documentário como Timestamp reside em sua capacidade de impedir que a realidade de uma guerra, tão distante para muitos, se torne uma mera abstração estatística, um número de mortos divulgado diariamente. Ao focar nas experiências das crianças, o filme transcende as disputas políticas imediatas – os interesses de Putin ou Zelensky, a presença de grupos extremistas em ambos os lados – e se concentra no impacto humano do conflito. Não há crianças neonazistas, nacionalistas ou de extrema direita; existem apenas crianças cuja pureza e inocência são brutalmente confrontadas e corrompidas pela estupidez e pela mesquinhez dos adultos.
E a destruição desta pureza é um dos efeitos mais perversos da guerra, esta invenção repulsiva de homens adultos sedentos de poder.
37) O cinema do realizador sul-coreano Hong Sang-soo tem como princípio organizador a observação meticulosa do comportamento de seus personagens; não se trata de um cinema calcado em tramas complexas ou em uma sucessão causal de eventos, mas sim na interação, na reação mútua, no dito e, crucialmente, na maneira como o dito é expresso – o conteúdo verbal assumindo por vezes uma importância secundária em relação à sua enunciação. É, em essência, um cinema de observação, uma característica que se reflete na abordagem de sua direção, que habitualmente constrói suas narrativas através de planos longos e estáticos, com movimentos de câmera sutis (ocasionais panorâmicas leves ou zooms in/out) que permitem que o espectador estude o comportamento dos indivíduos no campo, bem como o desconforto ou o conforto que surge como consequência de suas interações.
Em What Does that Nature Say to You, Hong Sang-soo mais uma vez investe em uma história simples em sua essência, acompanhando um casal de namorados formado por Donghwa (Ha Seong-guk) e Junhee (Kang So-yi), que, juntos há três anos, ainda não passaram pelo processo formal de apresentar Donghwa aos pais da companheira. Porém, ao levar a garota para casa certa manhã (os jovens moram em outra cidade e ela retorna nos fins de semana), a rotina é quebrada quando, antes de ter tempo de ir embora, ele acaba encontrando o sogro (Kwon Hae-hyo), que o convida a passar o dia ali e conhecer o resto da família – além da casa em si, que é bem maior do que supunha o jovem poeta.
A partir dessa premissa, Hong Sang-soo explora, entre outras coisas, seu habitual senso de humor, cuja sutileza frequentemente provoca o riso sem que saibamos exatamente o porquê – um riso que surge do comportamento dos personagens, de uma frase mal colocada, de um gesto de incômodo. Aliás, aqui talvez o cineasta assuma uma veia cômica mais explícita do que em trabalhos anteriores, parecendo mais determinado do que de costume a encontrar a comédia naquelas situações – e o sogro, embora se mostre afável e simpático, logo faz comentários irreverentes sobre o carro e o bigode do genro que acabam por sugerir uma ambiguidade desconcertante: são críticas veladas ou simpatia genuína? Essa incerteza, dividida entre o espectador e o protagonista, gera uma sensação de estranhamento curiosa mesmo que, de modo geral, percebamos que aquelas são pessoas gentis que buscam estabelecer uma relação amigável e evitar o desconforto mútuo.
Neste aspecto, é importante notar como a abordagem de Hong Sang-soo, embora sempre focada na direção de atores e na forma como a câmera e a montagem permitem que as interações fluam e os atores se expressem confortavelmente, parece conferir uma atenção um pouco mais evidente a outros elementos visuais, como direção de arte e figurinos. É curioso, por exemplo, o jogo cromático estabelecido a partir do figurino da namorada: se logo no início, ao chegarem à sua casa, as cores de sua roupa refletem quase perfeitamente as do sofá, estabelecendo visualmente seu pertencimento e conforto naquele espaço, o contrário pode ser dito com relação ao seu companheiro, que se encontra em um ambiente que lhe é desconhecido e, até certo ponto, intimidador. De forma similar, a cunhada do protagonista se veste ou de preto ou com cores diametralmente opostas àquelas da irmã, sublinhando uma diferença entre as duas que se revelará importante à medida que certos comentários da personagem geram desconforto e conduzem a desenvolvimentos posteriores na trama.
Marca registrada do cinema de Hong Sang-soo, os planos conjuntos, que permitem a observação simultânea de múltiplos personagens, valorizam a sutileza das performances, que, longe de se limitarem a recitações de diálogo, incorporam pausas e hesitações que conferem espontaneidade e verossimilhança importantes para salientar o desconforto da situação. Além disso, a repetição de conversas específicas, de elementos de diálogo e de certas perguntas contribui também para a tensão subjacente pelo estranhamento que estes ecos podem gerar. Além disso, como é de praxe nas obras do cineasta, há o momento em que o álcool entra em cena, alterando a dinâmica entre os personagens e revelando facetas ocultas – e o clímax do filme é construído em um longo plano (se há cortes secos representando pequenas elipses, estes são tão discretos que passam despercebidos) que acompanha, quase em tempo real, o processo de embriaguez do grupo. E é assim que o protagonista, inicialmente tenso e medindo as palavras para agradar os sogros, gradualmente se solta, expondo frustrações acumuladas ao longo do dia e gerando tanto apreensão quanto uma válvula de escape divertida.
Já o uso expressivo do zoom in/out, outra assinatura do diretor, resulta em escolhas narrativas interessantes, abrindo e fechando o quadro para ressaltar pontos específicos do diálogo ou, mais frequentemente, para sublinhar momentos de isolamento ou reflexão dos personagens. Em certa passagem, por exemplo, o protagonista e o sogro estão sentados em um banco, observando as montanhas a partir de um jardim criado pelo sogro em homenagem à sua mãe; inicialmente mais aberto, o quadro se expande ainda mais em um zoom out quando o sogro se levanta para buscar algo, acentuando o isolamento momentâneo do protagonista e o consequente alívio da pressão de ter que desempenhar um papel social específico. Com o retorno do sogro, porém, o zoom in não apenas restabelece o enquadramento anterior, mas o deixa ainda mais fechado, intensificando o desconforto e a consequente rigidez do rapaz. Além disso, o uso do desfoque intencional já presente em um filme anterior do diretor, In Water (inteiramente rodado fora de foco; uma escolha que naquela obra me pareceu mais um artifício do que algo orgânico), aqui se manifesta em diferentes gradações e com eficiência bem maior, refletindo literalmente o ponto de vista do protagonista, que, embora precise de óculos, frequentemente os mantém pendurados na camisa – algo que se soma a um elemento simbólico, já que reflete também certa falta de foco em sua trajetória de vida (seu desejo de investir na poesia parece mais uma reação à necessidade de se afirmar independentemente do pai, um advogado bem-sucedido, do que um objetivo pessoal claramente definido).
É sempre um prazer perceber como a produtividade impressionante de Hong Sang-soo não o impede de continuar realizando obras adoráveis como esta.
38) Realizado pela documentarista dinamarquesa Robin Petré, Only on Earth é uma coprodução espanhola que discute as alterações climáticas que vêm ocorrendo no planeta em velocidade cada vez maior e as consequências multifacetadas (e muitas vezes inesperadas) que se manifestam de formas distintas e preocupantes em diferentes regiões do globo. Neste caso específico, o olhar da diretora se volta para a comunidade autônoma da Galícia, situada no noroeste da Espanha - uma região que vem enfrentando condições crescentes de aridez e um aumento alarmante na frequência e intensidade de incêndios florestais. Este cenário, como o filme demonstra em um apropriado tom de urgência, resulta em um desastre ambiental de proporções significativas, afetando não apenas a população humana, mas, de maneira ainda mais trágica (principalmente por serem vítimas inocentes), a fauna local. Dito isso, é fundamental frisar que a preocupação central de Petré não reside em uma dissecação científica exaustiva das mudanças climáticas; o filme opta, em vez disso, por uma observação empática da dinâmica da vida na região, abordando em particular uma questão cultural bastante específica da Galícia: sua ancestral população de cavalos selvagens.
Ancorando o espectador nesse universo através de alguns personagens recorrentes, o filme nos apresenta, por exemplo, a um garotinho encantador que, ao lado do pai, participa do manejo dos cavalos selvagens, tendo também suas brincadeiras com um pequeno amigo registradas pela câmera. Ao mesmo tempo, conhecemos uma veterinária da região (cuja dedicação aos animais se torna evidente a cada gesto) e um bombeiro que, confrontado diariamente com a crescente emergência dos incêndios florestais, assume por vezes uma função didática ao elucidar para o espectador as complexas dinâmicas que culminam na intensificação desses desastres.
Retratando a vasta população de cavalos selvagens daquela terra com o mesmo respeito exibido pelos habitantes locais, a cineasta confere aos animais uma imponência que se torna quase mítica, optando frequentemente por enquadramentos em primeiríssimo plano que permitem que os olhos das criaturas tomem conta da tela – uma escolha estilística que, como não poderia deixar de ser, se junta ao efeito Kuleshov para levar o espectador a projetar significado naqueles olhares (um significado, é claro, que dependerá dos referentes e do temperamento de cada indivíduo). É perfeitamente possível enxergar ali afeto, fome, vazio ou – minha sensação particular – uma tristeza profunda. Aliás, aqui julgo importante ressaltar que ao identificá-los como “selvagens” estou apontando como não se tratam de animais domesticados ou criados por aquela comunidade; o trabalho do garotinho e de seu pai (e de vários outros conterrâneos), por exemplo, consiste em, uma vez por ano, reunir o maior número possível desses cavalos para aparar suas crinas – uma prática que se reveste de significado cultural e, suponho, também possui alguma dimensão comercial. Porém, apesar dessa intervenção pontual, o que transparece é respeito pela liberdade dos animais – o que, como já apontado, é ecoado pela distância respeitosa mantida pela câmera.
Infelizmente, por mais que os cavalos tenham seu habitat preservado pela população local, os efeitos globais das mudanças climáticas afetam a região de forma assustadora: com a diminuição das chuvas, os reservatórios de água sofrem rebaixamento e, num efeito cascata, a população de cavalos cai. Como os animais desempenhavam um papel de equilíbrio no ecossistema local, controlando a vegetação, seu declínio leva a um crescimento desordenado desta – e com o acúmulo de folhas secas sobre o solo, o risco de incêndios aumenta em frequência e em intensidade (e o bombeiro entrevistado por Petré chega a dizer que até o som produzido pelas chamas se alterou).
O que nos traz às sequências em que Only on Earth nos confronta com a realidade brutal dos incêndios ao produzir imagens quase apocalípticas, com o céu tingido de vermelho e a fumaça densa encobrindo a paisagem. Posicionando suas câmeras no meio do fogo ao acompanhar a luta dos bombeiros contra as chamas, o longa mergulha o espectador nesse caos amedrontador e o faz compreender a exaustão crescente estampada nos rostos dos combatentes – e também a sensação de impotência diante da força descomunal dos incêndios (em certo momento, o documentário retrata alguns moradores locais que, do alto de uma montanha, observam o incêndio se aproximar de suas casas, restando a eles apenas a torcida para que uma mudança na direção do vento salve tudo que possuem no mundo).
E tudo isso remete, no fim das contas, ao relato que abre a projeção e revela como os cavalos, ao fugirem do incêndio, acabam por se deparar com a presença humana e os equipamentos de combate ao fogo, preferindo, em um ato de desespero final, retornar para dentro das chamas. E não é difícil perceber o simbolismo existente no instinto daqueles animais, que parecem considerar o horror das chamas mais aceitável que a presença do Homem.
21 de Fevereiro de 2025