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Festival de Berlim 2025 - Dia #10 Festivais e Mostras

A cobertura da 75a. edição do Festival de Berlim é apoiada por leitores do Cinema em Cena (via apoio Pix) que participam de um grupo exclusivo do WhatsApp e recebem material exclusivo, incluindo vídeos, fotos, textos e áudios. Agradeço imensamente a esta comunidade tão afetuosa que se tornou tão instrumental para viabilizar o trabalho de cobertura de eventos como este. Para participar, aliás, basta fazer um apoio via Pix ([email protected]) e enviar um email para [email protected] com o comprovante. Não há valor mínimo - ou máximo!

Dia 10

39) Não há como medir palavras: o que sinto por CODA – No Ritmo do Coração, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2022, é um profundo desprezo. Medíocre como narrativa, aquela bomba não consegue sequer ser a melhor versão da história que conta, já que é uma refilmagem de uma produção franco-belga infinitamente superior (A Família Bélier). A vitória da produção, no entanto, não foi surpresa: típico projeto criado justamente como ímã de troféu, CODA ainda contou com o velho impulso da Academia de usar a distribuição de estatuetas para propagandear suas próprias virtudes – ou “virtudes”, já que tradicionalmente se mostra bem mais disposta a proclamar como valoriza a diversidade do que de fato a estimulá-la através de ações eficazes.

Para constatar os imensos problemas de CODA – e não me refiro apenas à sua qualidade, mas à sua capacidade de representar uma comunidade com dignidade e respeito –, basta compará-lo ao espanhol Sorda (Surda, em tradução literal), dirigido por Eva Libertad e protagonizado por sua irmã na vida real, Miriam Garlo - uma atriz e artista multimídia que, embora não tenha nascido sem audição, a perdeu gradualmente devido a uma condição genética familiar. Há alguns anos, o desejo da atriz de engravidar inspirou um curta-metragem homônimo que obteve grande reconhecimento, incluindo a vitória no Goya (o Oscar espanhol) – e que agora deu origem a esta versão em longa-metragem que merecidamente conquistou o prêmio do público na seção Panorama da Berlinale.

Como o título sugere, o filme gira em torno de Ángela (Garlo), uma personagem com deficiência auditiva casada com um homem ouvinte, Héctor (o carismático Álvaro Cervantes) – e a decisão do casal de engravidar dá origem a uma série de apreensões, incluindo a incerteza sobre como será a audição da criança. Dedicando o primeiro ato à tarefa de estabelecer a profunda harmonia entre o casal, Sorda ilustra, por exemplo, como Héctor, ao longo de seus três ou quatro anos de relacionamento, não apenas se esforçou para aprender a Língua de Sinais Espanhola (LSE) para se comunicar com a esposa como também toma cuidado para que esta jamais se sinta excluída das conversas com outras pessoas: durante uma consulta ginecológica, por exemplo, a médica se dirige a ele na expectativa de que traduza o que está dizendo à esposa e ele prontamente a corrige, apontando que Ángela faz leitura labial e é perfeitamente capaz de compreendê-la – um gesto simples, mas que demonstra respeito e afeto. Aliás, a maneira com que Garlo e Cervantes retratam o carinho, o amor e o respeito mútuos é fundamental para que o espectador se torne quase parte daquela relação: cenas cotidianas, como a que os traz dançando – ela acompanhando o ritmo do marido enquanto este traduz a letra da música em sinais –, criam o retrato de uma vida harmoniosa e sem impedimentos autoimpostos.

No entanto, mesmo então o filme começa a introduzir, com sutileza, as apreensões da protagonista: o relato de uma amiga sobre o filho adolescente ouvinte, que por vezes sente vergonha de se comunicar com os pais por sinais na frente dos amigos, desperta inquietação em Miriam – um sentimento que se acentua quando, em uma festa de aniversário, ela observa, à distância, o marido conversando com o jovem sem o uso de sinais, sugerindo a barreira de comunicação que poderá existir com sua própria filha caso esta nasça ouvinte. Além disso, o longa é hábil ao demonstrar que, por mais que haja sintonia entre o casal, há certa distância inerente às suas realidades distintas: em um plano visualmente eloquente, por exemplo, vemos Miriam em primeiro plano, no jardim de casa, enquanto ao fundo, desfocado, Héctor corta a grama usando fones de ouvido - uma imagem que sublinha a diferença em suas experiências sensoriais cotidianas.

Eficaz em levar o espectador a perceber os pensamentos e sentimentos da protagonista, Sorda demonstra esta sua sensibilidade em outro plano simples e belo: trazendo o casal deitado na cama enquanto Héctor dorme com o rosto próximo ao da esposa, o quadro revela como Ángela observa a orelha do companheiro – e isto é o bastante para que compreendamos sua angústia sobre esta possível barreira futura. Ao mesmo tempo, ainda que deixe claro como Ángela leva uma vida normal e produtiva, Sorda evita romantizar sua situação em passagens como aquela em que um grupo de amigos ouvintes do casal se reúne para um almoço e a conversa se torna um emaranhado de vozes simultâneas, impossibilitando a leitura labial e deixando a mulher deslocada. De forma similar, a dificuldade da comunicação durante o parto, quando as instruções da equipe médica são cruciais, também é construída com inteligência, mesclando tensão, confusão e um humor inesperado através da frustração crescente da personagem.

Sem cometer o erro fácil de vilanizar Héctor ao abordar as dificuldades que naturalmente surgem com a chegada do bebê, Sorda ainda assim deixa patente como há certas questões que o sujeito jamais compreenderá plenamente, esquecendo-se, por exemplo, de sinalizar ao conversar com a criança para que esta se habitue à LSE. Além disso, ao testemunhar o marido testando a audição da filha quando crê estar sozinho com esta, Ángela pode até entender o impulso e a apreensão, mas se machuca ao perceber o quão importante é para ele que a criança ouça. São nestes instantes que a estratégia adotada por Libertad no primeiro ato se comprova fundamental: como passamos a amar aquele casal, um possível conflito nos angustia – principalmente por sermos capazes de compreender as razões de cada um.

E é então, no terceiro ato – e aqui me contenho para não revelar demais, pois mesmo que Sorda não seja um filme de “spoilers” creio ser importante manter certa discrição neste caso –, que Eva Libertad toma uma decisão narrativa brilhante que eleva o filme a um patamar único, culminando em um desfecho que se revela a nota perfeita para encerrar uma obra maravilhosa. E que ajuda a firmar a posição deste longa como um dos melhores do Festival de Berlim de 2025.

40) Curiosamente, dois dos filmes que mais me tocaram nesta edição da Berlinale foram assistidos no último dia do festival: Sorda, sobre o qual já escrevi, e o dinamarquês Home Sweet Home, que por sua vez estabelece um diálogo temático interessante com o Palliativstation, documentário sobre cuidados paliativos que também discuti anteriormente ao longo desta cobertura.

Escrito e dirigido por Frelle Petersen, o longa acompanha Sofie (Jette Søndergaard), uma mãe divorciada que passa a trabalhar como cuidadora em um departamento estatal responsável por oferecer serviços de cuidados paliativos à comunidade local (o sistema de apoio social da Dinamarca é notável). Seguindo a personagem desde o seu primeiro dia de trabalho e ilustrando seu aprendizado sobre as nuances das delicadas e cansativas obrigações que terá que desempenhar, o filme se estabelece como um estudo de personagem à medida que os meses vão passando e Sofie forma laços não apenas com suas colegas de trabalho, mas com os pacientes/clientes que visita diariamente a fim de executar cuidados de enfermagem e mesmo tarefas domésticas, como preparar refeições e lavar louças. Paralelamente à nova profissão, ela é instrutora de ginástica em uma escola local e cuida da filha adolescente (que também é uma de suas alunas) – mas não demora até que a exaustão física e emocional comece a afetar sua relação com a garota. (Neste sentido, Home Sweet Home dialoga com outras obras presentes na Berlinale que lidam com a exaustão de mães solo, como A Natureza das Coisas Invisíveis e If I Had Legs I'd Kick You.)

Evocando com sensibilidade a natureza gentil e afetuosa de Sofie, Jette Søndergaard é hábil ao também sugerir sua solidão e esgotamento crescentes – e que aos poucos vão minando sua capacidade de manter sua gentileza habitual em um cotidiano que se torna ainda mais corrido graças a decisões burocráticas estúpidas. Ao mesmo tempo, o longa extrai força dramática das relações que se estabelecem entre a cuidadora e seus pacientes, cujas personalidades também são desenvolvidas com cuidado pelo roteiro e pelo ótimo elenco – e há, em especial, uma senhorinha adorável chamada Else que, encarnada com doçura por Karen Tygesen, logo se torna querida não só por Sofie, mas pelo espectador. Aliás, aí reside outra virtude do filme, que demonstra uma empatia imensa diante das necessidades e carências daqueles idosos: em certo momento, por exemplo, depois que Sofie e uma colega deixam a casa de Elsie, a câmera se detém no ambiente enquanto, num plano conjunto estático, observamos a personagem sentada em sua cadeira, sozinha e em silêncio, enquanto o tique-taque de um relógio ao fundo ressalta a solidão constante que atravessa a vida daquelas pessoas. Além disso, o filme se esforça – novamente ecoando o Palliativstation – para retratar com franqueza a dinâmica entre cuidadores e pacientes: do toque afetuoso à limpeza das regiões íntimas, tudo é apresentado com uma naturalidade que desmistifica o ato, tratando-o não como algo sensacionalista ou chocante, mas como uma expressão fundamental de humanidade.

Ilustrando as transições e os elementos do arco da personagem de maneiras visualmente inspiradas (como ao trazer mãe e filha em três momentos distintos escovando os dentes no banheiro, quando a composição dos quadros já comunica ao espectador o estado da relação entre elas), Home Sweet Home ainda repete o feito de outros títulos da Berlinale, como Ato Noturno e Sorda, e encerra sua narrativa com um plano final belíssimo que acentua ainda mais a força do que acabamos de assistir.

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E agora, sem enrolação, vamos aos resultados da premiação da Competitiva:

Urso de Ouro

Dreams (Sex Love), de Dag Johan Haugerud

Urso de Prata -- Grande Prêmio do Júri

O Último Azul, de Gabriel Mascaro

Urso de Prata -- Prêmio do Júri

The Message, de Iván Fund

Urso de Prata -- Melhor Direção

Huo Meng, por Living the Land

Urso de Prata de Melhor Atuação Principal

Rose Byrne, por If I Had Legs I’d Kick You

Urso de Prata de Melhor Atuação Coadjuvante

Andrew Scott, por Blue Moon

Urso de Prata -- Melhor Roteiro

Radu Jude, por Kontinental ’25

Urso de Prata -- Melhor Contribuição Artística

The Ice Tower, para a diretora Lucile Hadžihalilovićpela e a equipe criativa do filme 

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E assim concluo a cobertura da 75a. edição do Festival de Berlim. Foram quase 30 mil palavras escritas e viabilizadas pelo afeto dos leitores que seguem apoiando meu trabalho com tanta generosidade. É uma alegria e um privilégio poder contar com um grupo tão carinhoso como este.

22 de Fevereiro de 2025

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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