A cobertura da 78a. edição do Festival de Berlim é apoiada por leitores do Cinema em Cena (via apoio Pix) que participam de um grupo exclusivo do WhatsApp e recebem material exclusivo, incluindo vídeos, fotos, textos e áudios. Agradeço imensamente a esta comunidade tão afetuosa que se tornou tão instrumental para viabilizar o trabalho de cobertura de eventos como este. Para participar, aliás, basta fazer um apoio via Pix ([email protected]) e enviar um email para [email protected] com o comprovante. Não há valor mínimo - ou máximo!
Dia 1
01) O primeiro dia de exibições do Festival de Cannes de 2025 trouxe, como presente de boas-vindas, uma cópia restaurada de Em Busca do Ouro, um dos muitos clássicos realizados por Charles Chaplin - uma escolha que também serve para celebrar o centenário de seu lançamento em junho de 1925 (ele chegou ao Brasil no mês seguinte). Esta nova cópia, aliás, carrega um propósito duplo, já que não se trata apenas de uma restauração da qualidade da imagem em si, mas de um resgate da montagem original, que acabou sendo obscurecida de certo modo pela versão de 1942 criada pelo próprio Chaplin e na qual este eliminou as cartelas com intertítulos (substituindo-as por uma narração), refez elementos da trilha sonora e removeu ou encurtou cenas.
Chaplin, claro, era um perfeccionista. Enquanto muitos realizadores do período silencioso do Cinema lançavam dezenas de filmes anualmente, ele refazia tomadas de forma enlouquecedora e, não raro, esgotava seus atores no processo – e Em Busca do Ouro, por exemplo, Mack Swain, seu parceiro de cena durante boa parte da narrativa, chegou a desistir do filme em certo ponto por estar farto de repetir takes enquanto vestia um pesadíssimo casaco de pele sob o calor da Califórnia (a história se passa no Alasca, lembrem-se), sendo convencido a muito custo a retornar para a conclusão das filmagens.
Dito isso, mesmo reconhecendo como este perfeccionismo produziu uma obra notavelmente homogênea, devo admitir que há, em Em Busca do Ouro, algumas questões que me impedem de colocá-lo no mesmo nível de filmes como Luzes da Cidade (meu favorito absoluto), O Garoto ou Tempos Modernos – como, por exemplo, o fato de evidenciar de modo mais transparente sua estrutura episódica. Sim, esta é uma característica relativamente comum entre as comédias das décadas de 10 e 20, que eram frequentemente concebidas a partir de gags criadas no processo de filmagem e em torno das quais um fiapo de trama era amarrado, mas aqui a desconexão entre segmentos específicos do filme se torna bem mais patente – o que não deixa de ser irônico, já que este talvez tenha sido o primeiro projeto que Chaplin iniciou já tendo a história inteira mapeada.
É fácil observar, por exemplo, como o filme salta de uma prioridade narrativa a outra: há segmentos em que, como seria de se esperar, a comédia é o foco ostensivo – até ceder espaço a uma extensa seção em que o romance, tingido por um toque (melo)dramático, assume o centro da obra, deixando pouquíssimo espaço para gags. Aliás, refletindo esta oscilação, o longa introduz personagens importantes – incluindo o interesse amoroso do protagonista - depois de transcorridos mais de trinta minutos de projeção, o que representa um relativo descuido que Chaplin não costumava exibir.
Porém, feitas estas ressalvas (e que são pecadilhos diante de suas inúmeras virtudes), Em Busca do Ouro impressiona não só como feito artístico, mas pela escala de sua produção; é sempre espantoso testemunhar a magnitude dos projetos encabeçados naquele período por realizadores como Chaplin, que detinham não apenas liberdade criativa completa, mas poder e prestígio para jamais limitá-la por preocupações financeiras – e a quantidade de figurantes nos planos iniciais, por exemplo, é espantosa, somando mais de seiscentos indivíduos formando uma infindável fila de garimpeiros rumo ao Alasca (numa das poucas passagens rodadas em locação). De modo similar, os cenários envolvem a recriação de montanhas cobertas de neve, cabanas rústicas construídas sobre mecanismos que permitem sua inclinação e, claro, a cidadezinha que evoca o assentamento de Klondike que existia no território de Yukon no período da corrida do ouro.
Igualmente satisfatório é constatar como, um século depois, o humor do filme permanece incrivelmente eficaz, despertando um riso que vem não da nostalgia ou mesmo de uma admiração condescendente, como às vezes se observa em relação a obras do passado, mas de um riso genuíno que reflete a capacidade de Chaplin para conceber e executar gags – um talento que só rivalizava com seu talento para o humor físico. E, claro, mesmo os momentos de humor mais sutil, daqueles que provocam não a gargalhada aberta, mas um sorriso de canto de boca – como na célebre dança dos pãezinhos –, se tornam também memoráveis graças à delicadeza quase infantil de suas ideias.
(A propósito: é curioso notar como esta passagem, hoje universalmente associada a Em Busca do Ouro, foi originalmente executada por Roscoe “Fatty” Arbuckle em The Rough House (1917) – algo que discuti em um extenso post em meu blog sobre a trágica história do comediante. Isto, porém, não deve ser encarado como plágio por parte de Chaplin; a reciclagem, o reaproveitamento e o refinamento de gags presentes em outros filmes eram práticas correntes no período. Por outro lado, não acho absurdo supor que a sequência da cabana precariamente equilibrada na beira de um precipício tenha inspirado, décadas depois, outro instante fantástico em Um Golpe à Italiana, demonstrando como a Arte tem este poder de surpreender através de inspirações do passado.)
Outro elemento notável diz respeito à sua inventividade para empregar todo e qualquer elemento narrativo disponível na época para contar sua história: mesmo sem poder utilizar muitos diálogos, por exemplo (além daqueles presentes nos intertítulos), Chaplin consegue pregar uma peça no espectador através da ambiguidade de um pedido de desculpas e de uma declaração de amor, que inicialmente supomos ser dirigidas a um personagem apenas para sermos corrigidos logo depois. De forma similar, as cartelas que sempre apresentam o interesse amoroso interpretado por Georgia Hale desempenham função dupla graças à ilustração que trazem ao lado do nome da garota: uma flor que, em sua última aparição, surge sem pétalas, comunicando imediatamente algo importante sobre sua trajetória emocional.
Muito mais sentimental do que a maioria de seus contemporâneos, Chaplin escancara sua empatia até por personagens secundários (ou mesmo figurantes) – e na passagem que acompanha a virada de ano, ele se detém nos rostos de várias destas figuras para capturar suas expressões melancólicas enquanto a evocativa “Auld Lang Syne” é cantada em coro, sugerindo uma vida interior que acentua a humanidade do filme. Enquanto isso, o próprio Vagabundo comove, como de costume, através de sua inocência e de sua boa-fé, não conseguindo conter a felicidade ao dançar com Georgia ainda que desconfie de que há algo errado (e Chaplin comprova seu talento como ator ao permitir que notemos esta desconfiança em seu olhar).
Mestre da ironia dramática (quando leva o espectador a possuir informações que faltam ao protagonista), o astro-roteirista-produtor-compositor-diretor pontua a projeção com vários exemplos eficazes do recurso, tornando-nos ainda mais próximos de seu icônico personagem graças à nossa simpatia (e piedade) por sua ignorância, transformando cada uma de suas vitórias em motivo de celebração e de uma alegria que vai além daquela já trazida pelo riso frequente.
02) Nos últimos dois anos, o cinema internacional (e em particular o francês) gerou vários exemplos de um subgênero que costumo chamar de “musical surpresa”: filmes que, sem qualquer sugestão inicial do gênero, subitamente surpreendem o espectador quando os personagens começam a cantar (de modo frequentemente desafinado) melodias que mal se configuram como tal, sugerindo o que veríamos e ouviríamos caso um vizinho ou um estranho na rua desse início a um improviso musical. Não se trata, claro, de uma estratégia narrativa original - Woody Allen já havia explorado a ideia, por exemplo, em Todos Dizem Eu Te Amo, de 1996 -, mas que parece vir ganhando popularidade entre realizadores: se em 2024 tivemos em Cannes obras como os franceses Beating Hearts (de Gilles Lellouch) e Emilia Pérez (de Jacques Audiard), a edição deste ano trouxe o também francês Partir un jour e o chileno La Ola. Nenhum com bons resultados, diga-se de passagem.
Exibido como filme de abertura do festival, Partir un jour gira em torno da chef Cécile Béguin (Juliette Armanet), que, depois de participar do programa de televisão Top Chef, está prestes a inaugurar seu próprio restaurante ao lado do companheiro Sofiane (Tewfik Jallab), preocupando-se em conceber um menu que seja um representante incontestável de alta culinária. Ansiosa com a aproximação da inauguração, Cécile ainda descobre estar grávida e, como se não bastasse, é informada de que o pai sofreu um ataque cardíaco (o terceiro!), o que a leva a retornar à sua pequena cidade natal para visitá-lo. Vivido por François Rollin como um homem que se recusa a aceitar a fragilidade de sua saúde, Gérard Béguin é proprietário de um restaurante localizado em um posto de gasolina, não demorando até que o filme aponte a ironia representada pelo fato de que a origem da paixão da protagonista pela culinária é também uma antítese da sofisticação dos pratos que agora cria e que envolvem termos rebuscados como "redução", "emulsificar", "confitar" e "mise en place".
Baseado em um curta-metragem dirigido pela diretora Amélie Bonnin, que também assina a direção deste longa, Partir un jour recorre a uma estrutura narrativa previsível: a protagonista passa praticamente toda a projeção tentando retornar a Paris e à sua vida de refinamento, mas este esforço constante para fugir de suas raízes é sempre sabotado por algum imprevisto ou por impulsos que ela mesma falha em compreender. Infelizmente, o roteiro assinado por Bonnin ao lado de Dimitri Lucas constrói artifícios pouco críveis para dificultar esse retorno – como o fato inexplicável de a personagem depender da carona oferecida pelos caminhões que param no posto de gasolina, aparentemente ignorando a existência de serviços como ônibus, táxis ou Ubers. O objetivo, claro, é o de forçá-la a reconhecer o valor da “simplicidade” que passou a rejeitar.
Para ilustrar esta rejeição, aliás, o filme emprega um recurso com bom potencial humorístico: as anotações feitas por Gérard de declarações feitas pela filha em sua participação no Top Chef e que frequentemente insultavam suas origens e o tipo de culinária que ele passou a vida praticando. Estas falas, contudo, são por vezes tão pesadas que se torna difícil enxergar o humor na insistência do pai em recitá-las; em vez disso, a simpatia do espectador pela protagonista é desafiada, já que suas observações esnobes, arrogantes e genuinamente ofensivas sintetizam um dos problemas centrais da obra: a agressividade e a postura antipática de Cécile, que desafiam nossa identificação com a personagem mesmo que compreendamos as pressões que a perturbam.
Outro elemento que complica esta questão, por sinal, é seu reencontro com um amigo da juventude (e antigo interesse amoroso), Raphaël (Bastien Bouillon), que, além de clichê, é marcada pelo profundo egoísmo dos dois personagens – um egoísmo cuja natureza específica não discutirei para evitar spoilers, mas que envolve certas revelações que tornam difícil nosso investimento emocional nessa relação, que em vez disso cede lugar até mesmo a certa antipatia pelo casal e impaciência diante de seus dilemas quase adolescentes.
E já que mencionei “impaciência” como uma reação provocada pelo projeto, é inevitável apontar como esta só se torna mais acentuada quando os interlúdios musicais tomam conta da narrativa. Surgindo aleatoriamente durante a projeção e oscilando entre passagens que sugerem que a música é apenas uma representação não-diegética da subjetividade emocional e mental daquelas pessoas e outras nas quais fica claro que os personagens estão de fato cantando e sendo ouvidos pelos demais, as canções e coreografias trazem uma crueza que pode até buscar desafiar as convenções do gênero, mas que na prática soa como um recurso artificial e sem muito propósito. O fato é que, apreciando ou não os resultados de Beating Hearts e Emilia Pérez, ao menos os elementos musicais destes filmes contrastavam com os universos crus e violentos que apresentavam ao espectador, criando um choque estilístico curioso. Já em Partir un jour torna-se difícil identificar este contraste, já que a realidade classe média dos personagens e sua aparente sofisticação cultural transformam o recurso em uma mera afetação arbitrária que parece existir apenas para diferenciar superficialmente a produção de inúmeras outras que investiam exatamente nas mesmas convenções e clichês.
Esta artificialidade atinge seu ápice quando personagens que mal foram apresentados já começam a cantar sobre mágoas da juventude, falhando em estabelecer qualquer conexão orgânica com a narrativa – e não é à toa que um dos poucos bons momentos do filme ocorre quando (vejam a ironia) um personagem está prestes a iniciar uma canção e é interrompido. O que representa um alívio não só para o espectador, mas para o elenco, já que há sempre a sensação de que os atores não se encontram confortáveis com as músicas e as coreografias que devem executar.
Para piorar, Partir un jour demonstra um conservadorismo surpreendente ao lidar com o arco relacionado à gravidez da protagonista: declarando desde o princípio seu desejo de abortar, já que não tem qualquer desejo de ser mãe, Cécile tem sua decisão questionada de modo recorrente por vários dos personagens que supostamente contam com a simpatia do espectador – e há um momento em que o longa chega a empregar um dos recursos mais vis defendidos por políticos conservadores, obrigando a gestante a ouvir os batimentos cardíacos do feto. O mais decepcionante, porém, é constatar como o próprio filme parece se recusar a ouvir a personagem, insistindo, através de outros personagens e de sua própria estrutura (com flashbacks maniqueístas que mostram Gérard interagindo com a filha ainda criança), que a maternidade poderia ser uma “vocação” legítima de Cécile. E considerando a assinatura de uma mulher na direção e no roteiro, esta abordagem é ainda mais frustrante.
Não é incomum que filmes de abertura de festivais sejam medíocres; talvez esta seja uma estratégia dos organizadores para baixar nossas expectativas e nos levar a uma apreciação maior do restante da programação. Se for este o caso, porém, desta vez o Festival de Cannes exagerou na dose.
14 de Maio de 2025