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Dia 2
03) O primeiro filme da mostra competitiva exibido este ano em Cannes foi o alemão Sound of Falling, da diretora Mascha Schilinski – cineasta que há oito anos estreou em longas-metragens com o interessante A Filha. Diferentemente de obras ancoradas em tramas elaboradas ou estudos de personagem, porém, este seu novo trabalho se revela um filme de sensação, talvez até sobre um temperamento específico: esta sensação seria a angústia; este temperamento, o de terror existencial contínuo. E não por acaso, já que a obra gira essencialmente em torno do espectro da morte.
Escrito por Schilinski ao lado de Louise Peter, o roteiro ancora sua narrativa em uma fazenda, acompanhando quatro garotas de gerações diferentes e cobrindo aproximadamente cem anos da história daquele lugar. Saltando de uma para outra sem qualquer tipo de ligação aparente, o filme até permite que eventualmente o espectador reconstrua mentalmente uma cronologia, estabelecendo conexões entre personagens comuns nas diferentes histórias, mas este exercício jamais se estabelece como propósito central da obra. Aliás, justamente por ancorar a narrativa em um único lugar ao longo de um extenso período (demonstrando um interesse similar aos de Aqui, de Robert Zemeckis, e do maravilhoso curta-metragem Quando Aqui, de André Novais - ambos inspirados no mesmo livro), o filme acentua, por contraste, a efemeridade humana: nós passamos, os espaços ficam.
Ao adotar este tipo de abordagem, Sound of Falling inevitavelmente ressalta a importância do registro da memória, já que, ao saltar de uma geração a outra, permite que o espectador perceba como determinado personagem cuja história acompanhávamos encontra-se morto há décadas embora sua existência, suas angústias e seus sonhos sigam presentes e urgentes em nossa percepção. Aliás, as próprias escolhas estéticas do filme remetem a este conceito de preservação do passado ao empregarem uma razão de aspecto reduzida que acentua a ideia de retrato (além de promover uma atmosfera claustrofóbica que salienta a angústia das mulheres que guiam a história). Além disso, o tom sépia adotado pelo diretor de fotografia Fabian Gamper em diversos instantes colabora para cimentar o conceito de passado e de sua continuidade através do registro fotográfico – uma preocupação complementada pela composição dos quadros, que em várias cenas investe na sugestão de frames dentro de frames, emoldurando os personagens com batentes de portas ou divisórias de janelas.
Além destas referências visuais, há, claro, a presença literal de fotos nas várias linhas cronológicas: quando observamos a geração mais antiga retratada no filme, por exemplo, o estranho costume de fotografar os mortos resulta em uma sequência incômoda durante a qual um cadáver é preparado para o evento, tendo seus olhos costurados para que permaneçam abertos enquanto a família posa ao seu redor – e não menos importante, neste sentido, é constatar a própria deterioração das fotografias ao longo do tempo, espelhando o desaparecimento gradual das pessoas e das memórias que deixaram/construíram. Para completar, em dois momentos particularmente significativos o filme enfoca retratos nos quais alguém, devido a um movimento durante o registro, surge como uma figura fantasmagórica - mais uma vez estabelecendo uma conexão visual direta entre o retrato como documento do passado e a inevitabilidade da morte.
Esta coesão visual do filme na representação de seus temas é notável, sendo ecoada pelo ótimo desenho de som, que contribui decisivamente para esta unidade. Durante as transições entre diferentes épocas, por exemplo, o som por vezes adquire qualidades analógicas – reminiscentes de um vinil ou de uma película antiga – que sublinham a sensação de passado. Enquanto isso, a câmera é movida com fluidez quase espectral, sugerindo uma presença fantasmagórica que pode ser interpretada não necessariamente como um espírito, como algo sobrenatural, mas como o eco de alguém que ocupou aquele espaço – e em determinados momentos, as personagens dirigem o olhar diretamente para a câmera, como se reconhecessem esta presença.
Outro aspecto fundamental da narrativa reside no fato de que esta é ancorada por quatro mulheres nas diferentes épocas retratadas, centralizando a subjetividade e a experiência femininas: vemos como são ignoradas, tratadas como mercadoria, objetificadas; testemunhamos a depressão resultante tanto da falta de propósito imposta por suas circunstâncias quanto da opressão sistemática que enfrentam. E mesmo quando há indícios de independência sexual – como na história mais próxima do nosso presente, possivelmente no início dos anos 80 (algo sugerido pela ainda existente divisão entre Alemanha Oriental e Ocidental) – percebemos o caráter autodestrutivo na relação da personagem com sua própria sexualidade, consequência de condicionamentos e abusos que a levaram a enxergar (em função da própria imaturidade) seu comportamento sexual como forma de controle quando na verdade constitui um mecanismo de autodestruição.
Alcançando momentos de beleza inquestionável ao contemplar a passagem do tempo, a natureza da morte e os mecanismos da memória, o filme inclui, por exemplo, a tocante reflexão de uma personagem sobre a bisavó falecida e como, com o passar do tempo, já não consegue lembrar de seu rosto – ainda que a recordação de seu cheiro e do toque de suas mãos enrugadas permaneça viva. Em Sound of Falling, a morte constitui presença constante, sendo observada especialmente através da perspectiva infantil diante da finitude – um terror que, embora não exclusivo das crianças, revela-se com particular intensidade quando estas são confrontadas pela primeira vez com a ideia de término e a compreensão de que este chegará para todos que conhece.
Em certos aspectos, portanto, poderíamos classificar este belo trabalho de Mascha Schilinski como um filme de terror no qual o monstro é, paradoxalmente, a própria vida – não por sua essência vital, mas por conter em si mesma a perspectiva inescapável da morte.
04) A Quinzena dos Realizadores – seção paralela do Festival de Cannes que busca incluir obras que tenham abordagens mais inovadoras - abriu sua edição deste ano com Enzo, projeto iniciado pelo cineasta francês Laurent Cantet (diretor do belo Entre os Muros da Escola) e concluído, após sua morte precoce aos 63 anos em decorrência de um câncer, por Robin Campillo - uma circunstância singular que leva o filme a ter uma espécie de crédito duplo: "um filme de Laurent Cantet realizado por Robin Campillo".
Ambiciosamente denso em suas camadas temáticas, Enzo poderia facilmente soar sobrecarregado ou difuso ao tentar abordar simultaneamente questões como preconceito de classe, adolescência, sexualidade, imigração e conflitos geracionais; no entanto, a escolha específica destes temas e a maneira como são desenvolvidos acabam se complementando de forma notavelmente orgânica, convergindo para um estudo de personagem sensível e tocante que gira em torno do adolescente de 16 anos que dá título ao longa. Apresentado ao espectador enquanto trabalha na construção de uma casa – misturando cimento, levantando paredes e, como logo se torna evidente, realizando um péssimo trabalho -, Enzo desperta a frustração de seu supervisor, que decide levá-lo para casa a fim de conversar com seus pais. E aí vem a surpresa: a família do jovem ocupa uma residência ampla, luxuosa e com vista para o mar – e o choque diante da revelação não apenas afeta o supervisor, que rapidamente muda sua postura autoritária para uma de quase submissão diante da evidente diferença de classe social, mas também o espectador, que se vê confrontado com a primeira das muitas questões apresentadas pelo filme: por que um adolescente de família abastada insistiria em trabalhar como operário na construção civil?
Recebida com visível ressalva por seus pais, esta decisão de Enzo frustra especialmente Paolo, seu pai (vivido pelo sempre excelente Pierfrancesco Favino), ao passo que Marion, sua mãe (interpretada por Élodie Bouchez), faz um esforço maior para compreendê-la. No entanto, quais são as razões por trás desta preocupação? Seria um temor pelo futuro financeiro do filho? Provavelmente não, considerando a crescente valorização econômica (não mencionada diretamente no filme, mas presente como subtexto) de trabalhos manuais na Europa contemporânea, especialmente quando contrastados com profissões potencialmente ameaçadas pela inteligência artificial. O que resta, então, é a constatação de que esta é uma inquietação que parece derivar, ao menos parcialmente, de um preconceito de classe, da percepção do trabalho manual como intrinsecamente inferior às ocupações intelectuais ou liberais, como as exercidas pelos próprios pais do protagonista: ele, professor de matemática; ela, engenheira.
Cantet e Campillo evitam, contudo, a armadilha da simplificação maniqueísta: o pai de Enzo não é retratado como um tirano intolerante; ao contrário, tanto ele quanto a esposa são apresentados como figuras afetuosas que genuinamente tentam compreender a escolha do filho de abandonar a escola para trabalhar na construção. Marcada por gestos de carinho e preocupação constante - mesmo quando rechaçados pela brusquidão adolescente do protagonista -, a dinâmica familiar inclui ainda a figura do irmão mais velho do personagem-título, que se prepara para ingressar na universidade, o que é visto com orgulho óbvio por Paolo e Marion. Porém, quando o rapaz leva alguns colegas para estudar e nadar na piscina da casa de sua família, inevitavelmente nos questionamos se os colegas operários de Enzo seriam recebidos com naturalidade similar – ou se presenciaríamos talvez algo semelhante à dinâmica retratada em Corra!: uma cordialidade excessiva por parte de seus pais que apenas mascararia o preconceito subjacente (“Eu votaria em Obama para um terceiro mandato”).
Justificando sua escolha profissional como um desejo de "fazer algo concreto", de construir estruturas duradouras (chegando a demonstrar certo orgulho de suas mãos machucadas pelo trabalho), Enzo demonstra, na prática, uma reveladora apatia, uma falta generalizada de entusiasmo que sugere uma crise existencial mais ampla. Ou talvez, como o próprio filme sutilmente propõe, não se trate propriamente de uma crise, mas da condição adolescente em si – um estado permanente de turbulência emocional durante o qual problemas reais se misturam a angústias que apenas o tempo redimensionará. Interpretado pelo estreante Eloy Pohu, que oferece uma composição contida que captura com eficiência esta ambivalência adolescente, Enzo tem sua vida interior evocada por duas imagens poéticas que sintetizam seu estado emocional: em uma delas, ele deita à beira de um despenhadeiro, como que suspenso entre o mar e o céu; em outra, interrompe sua natação em um lago deslumbrante para contemplar uma montanha aparentemente intransponível – metáforas visuais para a angústia e a ansiedade que o consomem.
Outro elemento inevitável da experiência adolescente, claro, é seu despertar sexual, que aqui se manifesta através de sua crescente atração por Vlad, um colega de trabalho ucraniano (vivido pelo carismático – e também estreante – Maksym Slivinskyi): aparentando ser o primeiro reconhecimento claro de Enzo com relação ao seu desejo por outros homens, esta subtrama introduz ainda outra camada temática, já que Vlad, enfrentando a possibilidade de ser convocado para lutar na guerra em seu país, se mostra naturalmente relutante em retornar para um conflito que, como tantos outros, representa o desperdício de incontáveis vidas jovens em nome das ambições políticas de homens inescrupulosos.
Capturando também com precisão e delicadeza a ansiedade constante que a paternidade e a maternidade representam, Enzo ilustra esta condição em uma de suas sequências mais tocantes, quando mostra dois casais de meia-idade (os pais de Enzo e os de alguns amigos da família) observando seus filhos adolescentes nadando enquanto comentam sobre as crises que estes enfrentam, ilustrando como mesmo em momentos de aparente relaxamento estes pais permanecem consumidos pela preocupação com o bem-estar emocional e o futuro incerto de suas crias – uma ansiedade amplificada pela consciência de que, possivelmente pela primeira vez na história recente, as novas gerações enfrentarão maior dificuldade para alcançar ou superar o padrão de vida de seus pais.
Este último tema – a crescente precariedade econômica e existencial imposta às gerações mais jovens – emerge como uma das preocupações centrais do filme: em um mundo marcado por desigualdades cada vez mais profundas, crises climáticas que se traduzem em instabilidade financeira e os efeitos devastadores de mais de quatro décadas de políticas neoliberais, o desamparo de Enzo transcende sua experiência individual e acaba por refletir o que é tragicamente uma condição geracional.
05) Ao longo das duas últimas décadas, o cineasta ucraniano Sergey Loznitsa demonstrou diversas vezes sua notável versatilidade ao se mostrar tão eficiente na ficção (Uma Criatura Gentil, Donbass) quanto no documentário (Funeral de Estado, A História Natural da Destruição) – e agora ele retorna à mostra competitiva de Cannes com Two Prosecutors, obra ambientada na União Soviética de 1937, durante o auge do expurgo stalinista – período em que Stalin eliminava sistematicamente do governo e do partido qualquer um que encarasse como crítico ou possível adversário.
Adaptado do livro de Georgy Demidov pelo próprio diretor, o longa tem início em uma das inúmeras prisões que abrigavam os supostos inimigos do líder soviético e para as quais estes desafortunados eram basicamente enviados para morrer graças à rotina de trabalhos forçados sob condições de frio e fome. Por circunstâncias envolvendo coragem e sorte, porém, um desses prisioneiros, um veterano do Partido e combatente da Revolução de 1917, consegue enviar uma carta a um promotor local, Kornyev (Alexander Kuznetsov), que decide visitá-lo para ouvir seu depoimento. Leal ao Estado e aos princípios da revolução, o sujeito se choca ao constatar as ações da NKVD (a polícia secreta soviética), que conclui terem sido realizadas sem o conhecimento de Stalin – o que o leva a uma jornada (física, emocional e ideológica) para apurar e denunciar os abusos.
Com uma estrutura interessante que sugere circularidade ao trazer o protagonista em duas longas viagens de trem em sentidos opostos, Two Prosecutors se passa em um universo no qual o tempo parece caminhar com mais lentidão, quase a contragosto – algo salientado pela abordagem de Loznitsa ao conceber quadros normalmente mais abertos em planos estáticos e longos que nos obrigam a observar cada detalhe do ambiente. Em contrapartida, ao adotar composições mais fechadas no ato final, o diretor cria uma tensão subjacente às conversas que testemunhamos, como se o mundo estivesse encolhendo ao redor de Kornyev. De modo similar, a sequência que traz o promotor visitando o prisioneiro e passando por múltiplas barreiras de segurança remete a uma descida ao inferno, contrastando também o exagero de todo aquele aparato de vigilância à fragilidade do detento – um idoso debilitado, incapaz de manter-se em pé sem auxílio –, evidenciando o absurdo de um sistema alimentado pela paranoia.
Carregando o filme através de uma performance cujo minimalismo só acentua sua intensidade, Kuznetsov possui um rosto especialmente marcante que, caracterizado por um nariz visivelmente quebrado (resultado de lutas de boxe), confere ao personagem o ar de alguém que já viveu e testemunhou muitas coisas. Ainda assim, o ator evoca a desilusão crescente de Kornyev ao escutar o testemunho de Stepniak (Aleksandr Filippenko) apenas através do olhar, fazendo jus à confiança de Loznitsa, que mantém a câmera fixa em seu rosto em longos planos. Paradoxalmente, mesmo diante de tudo que escuta, Kornyev persiste em sua ilusão acerca de Stalin – uma cegueira que reflete a dos próprios prisioneiros que, vítimas do expurgo, ainda enviam cartas suplicando a clemência do líder, que julgam não estar a par de todas aquelas injustiças. E é esta incapacidade de reconhecer como a violência, a traição e a degradação dos ideais revolucionários têm origem precisamente no topo da hierarquia constitui a tragédia central dessas figuras.
Estabelecendo paralelos evidentes com "O Processo" de Kafka ao retratar a burocracia estatal como um labirinto de lógica impenetrável no qual as origens da injustiça permanecem obscuras e os caminhos para sua superação são inacessíveis, Loznitsa emprega recursos visuais curiosos para ilustrar esta realidade: em certo momento, por exemplo, quando o protagonista visita o edifício do procurador-geral, um simples incidente – papéis derrubados numa escada – provoca a paralisação automática de todos os presentes, simbolizando uma sociedade robotizada na qual as pessoas deixam ser indivíduos e se comportam como máquinas. Aliás, nesta mesma passagem, o promotor encontra um homem imobilizado pelo medo e sussurrando pedidos de auxílio para encontrar a saída, sintetizando assim o clima de terror generalizado que, por contraste, ressalta a coragem do protagonista ao persistir em sua busca.
Contando com uma autenticidade que transcende a ficção, já que Demidov, autor do livro original, passou de fato 14 anos em um gulag, Two Prosecutors comprova a insistência da espécie humana em cometer os mesmos erros ao soar tristemente contemporâneo, sendo impossível ignorar, por exemplo, os paralelos com a administração de Trump nos Estados Unidos e sua perseguição sistemática a funcionários governamentais que ousam questionar suas políticas. Do mesmo modo, incidentes recentes na trajetória do próprio diretor fortalecem esta constatação, já que, ao se opor à decisão de vários festivais internacionais de banir cineastas russos depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, Loznitsa acabou expulso da Academia de Cinema Ucraniana, demonstrando como o impulso autoritário para calar o dissenso segue vivo e presente.
15 de Maio de 2025