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Dia 4
10) Boa parte dos personagens de Eddington, novo trabalho do diretor Ari Aster, compartilha uma característica fundamental: ao expressarem suas supostas convicções políticas, eles acabam por misturar argumentos de forma caótica, perdem o foco das discussões e constroem raciocínios sem coerência lógica ou base factual. Curiosamente, alguns destes traços podem ser atribuídos à própria construção narrativa do filme.
Apresentando-se como uma obra ancorada em nosso momento histórico por capturar a confusão ideológica e a natureza dispersa das discussões que dominam por alguns segundos a atenção coletiva - qualidades que definem cada vez mais o debate público contemporâneo, especialmente nas plataformas digitais –, o filme conta uma história ambientada em maio de 2020, período significativo por permitir que a narrativa inclua tanto a pandemia de Covid-19 e as medidas de lockdown quanto o assassinato de George Floyd pela polícia e a intensificação do movimento Black Lives Matter. É neste contexto que somos levados a uma pequena cidade americana que vem debatendo a aprovação da construção de um grande centro de dados, possivelmente destinado ao desenvolvimento de inteligência artificial – uma iniciativa defendida pelo prefeito Ted Garcia (Pedro Pascal), que aposta nos supostos benefícios econômicos do projeto enquanto enfrenta oposição de grupos ambientalistas que alertam para suas possíveis consequências ecológicas negativas.
Paralelamente a este conflito central, a própria imposição do lockdown e a obrigatoriedade do uso de máscaras geram resistência em certos segmentos da população - incluindo o xerife da comunidade, Joe Cross (Joaquin Phoenix), que também nutre ressentimentos pessoais com relação ao prefeito em função de um antigo incidente envolvendo sua esposa Louise (Emma Stone). Cada vez mais raivoso, Joe anuncia impulsivamente que irá se candidatar à prefeitura para disputar o cargo com seu atual ocupante, o que apenas aumenta as tensões com sua esposa, que teme a atenção que isto despertará sobre sua saúde mental. Como se não bastasse, este clima negativo é acentuado pela presença constante da mãe de Louise, obcecada por teorias conspiratórias e pelo impulso de criticar o genro.
Vivido por Joaquin Phoenix com sua habitual intensidade, Joe é uma figura de temperamento complexo – não totalmente passivo diante do mundo, mas sempre hesitante em se entregar a confrontações verbais diretas (particularmente com a esposa emocionalmente distante). Isto, claro, o leva a experimentar uma frustração crescente que acaba por se extravasar das piores maneiras possíveis, permitindo que o ator equilibre a situação dramática do personagem com toques de humor que evidenciam um timing cômico impecável – como no momento em que toma impulsivamente o celular de um manifestante e imediatamente percebe ter cometido um erro. Além disso, a falta de educação formal do sujeito (ilustrada por detalhes como um adesivo de campanha no qual a expressão "you are" aparece incorretamente grafada como "your") compromete ainda mais sua capacidade de articulação, deixando-o em imensa desvantagem diante do prefeito.
O que nos traz a Pedro Pascal, que compõe Ted como um político calculista cujo carisma natural se torna ainda mais evidente diante da personalidade apagada de seu rival. Apresentando-se como um progressista, ele não demora a revelar facetas demagógicas e oportunistas: se por um lado defende a Ciência ao apontar a importância do lockdown e do uso de máscaras, por outro ele demonstra facilidade em ignorar os alertas científicos sobre o terrível impacto ecológico que o tal centro de dados provocará na região. Neste sentido, o roteiro escrito pelo próprio Aster merece créditos por evitar simplificações, recusando-se a estabelecer representações unidimensionais do espectro político norte-americano contemporâneo (principalmente considerando as limitações estruturais deste espectro, onde o progressismo mainstream representado pelo partido Democrata se coloca muito distante de posições genuinamente esquerdistas). Com isso, o contraste entre os dois personagens centrais se manifesta principalmente em seus estilos opostos de confrontação política, com Phoenix encarnando uma impulsividade emocional autodestrutiva enquanto Pascal representa a racionalidade calculista e a eficácia política, constantemente desorientando seu oponente menos articulado e estrategicamente despreparado. (Já as participações de Austin Butler e Emma Stone se revelam surpreendentemente limitadas pelo roteiro, o que é uma decepção.)
Ilustrando a onipresença das redes sociais como plataformas de expressão política e construção identitária na atualidade, Eddington retrata, por exemplo, as consequências potencialmente irreversíveis de transmissões ao vivo impulsivas e de posts escritos no calor do momento, mas não ignora também a importância destas redes para promover mobilizações que em teoria podem resultar em mudanças políticas socialmente importantes. Por outro lado, o filme oferece uma reflexão relevante sobre as formas contemporâneas de ativismo político, que, principalmente nos meios digitais, surgem frequentemente desconectadas de qualquer formação ideológica – o que inclui o fenômeno crescente do ativismo essencialmente performático aqui exemplificado por jovens brancos privilegiados que se engajam superficialmente em causas sociais apenas para impressionar potenciais parceiras sexuais. Para completar, o roteiro aborda a ansiedade autocrítica paralisante de ativistas socialmente afortunados que constantemente questionam seu próprio direito de participação política – elemento que se transforma em piada recorrente ao trazer personagens protestando publicamente enquanto criticam sua própria legitimidade para protestar – algo que o longa sugere ser fruto não necessariamente de uma consciência sobre lugar de fala, mas de uma mera sinalização de virtude.
Toda esta dinâmica vista em Eddington acaba por ilustrar a confusão de conceitos que caracteriza gerações formadas politicamente no ambiente fragmentado e algoritmicamente manipulado das redes sociais, sem fundamentação histórica consistente ou formação teórica substantiva – resultando em um ativismo superficial e esteticamente orientado, o que aqui é simbolizado no momento em que o protagonista prepara tripé e iluminação antes de fazer um discurso político importante. Ao mesmo tempo, o filme examina como as plataformas digitais facilitam a propagação viral de desinformação e teorias conspiratórias; personagens ideologicamente conservadores reproduzem narrativas sobre Bill Gates e controle populacional, vacinas que supostamente contêm microchips de vigilância, negacionismo pandêmico, teorias sobre "Deep State" e a obsessão costumeira envolvendo George Soros, ao passo que oportunistas exploram estas crenças irracionais para ganho político imediato e enriquecimento financeiro pessoal.
Quanto a estes últimos, um bom exemplo é representado pelo personagem de Austin Butler, um impostor que constrói uma biografia repleta de ficção para se posicionar como guru espiritual e atrair seguidores emocionalmente vulneráveis – o tipo de picareta tão comum no empreendedorismo motivacional digital que prolifera nas redes. De maneira similar, o longa reflete como políticos populistas conservadores instrumentalizam discursos de medo e paranoia social, cultivando a desconfiança generalizada para se apresentarem como salvadores da nação – processo que resulta na ascensão de figuras como aquelas que nem preciso mencionar.
É uma pena, portanto, que depois de construir discussões instigantes e personagens complexos, Eddington desmorone em seu ato final – um colapso que talvez resulte da dificuldade em encontrar respostas satisfatórias para questões sociais que hoje soam quase insolúveis. Falhando em priorizar a coerência dos personagens, o roteiro parece optar pelo caos e pela violência não como catarse tematicamente significativa ou como um comentário sobre tendências historicamente inevitáveis, mas como puro espetáculo e mesmo como exercício de gênero - decisões que comprometem consideravelmente a obra.
11) Foi especialmente interessante assistir ao chileno La Ola (A Onda) logo após Eddington, de Ari Aster, já que ambos os filmes abordam, embora com enfoques diferentes, a questão do ativismo político exercido por pessoas que constantemente questionam a própria legitimidade para defender certas posições.
Dirigido por Sebastián Lelio, o longa se inspira nas manifestações que ocorreram no Chile em 2018 e ficaram conhecidas como parte da "nova onda feminista" – protestos que se espalharam por todo o país e incluíram greves organizadas por coletivos de mulheres e denúncias sobre abusos sexuais frequentes em instituições tradicionais. A partir deste contexto, La Ola se concentra nas alunas de uma universidade que expõem casos de assédio e abuso sexual cometidos tanto por colegas quanto por professores em posições de autoridade, trazendo como centro destes eventos uma estudante de música, Julia (Daniela López), que, prestes a realizar a audição mais importante de sua carreira, começa a se questionar quanto à natureza de uma interação específica com o assistente de sua professora, que talvez tenha constituído um comportamento abusivo – e o que começa como dúvida se transforma em certeza e revolta à medida que ela reconsidera o que ocorreu. Eventualmente – e contra a própria vontade – a garota se transforma no centro simbólico das manifestações no campus; uma espécie de símbolo involuntário dos crimes tolerados e sistematicamente ignorados pela instituição.
Embora declaradamente feminista em sua temática e posicionamento, contando também com três mulheres na concepção do roteiro (Josefina Fernández, Manuela Infante e Paloma Salas), o filme é um claro resultado da mão pesada de seu diretor e co-roteirista, que, mesmo responsável pelo excepcional Uma Mulher Fantástica e pelo intrigante O Milagre, aqui se perde completamente ao estabelecer a narrativa do projeto, expondo inclusive sua insegurança com relação ao seu direito de contar esta história. Aliás, a contradição aparente de um filme feminista dirigido por um represente do gênero tradicionalmente opressor é superficialmente abordada pelo próprio longa em um momento metalinguístico que reconhece como o roteiro foi "escrito pelo patriarcado" – uma passagem que, em vez de soar como genuína autocrítica, parece apenas uma justificativa preventiva, um escudo contra condenações futuras.
Limitando-se a repetir clichês associados a discussões superficiais sobre abuso sexual quando conduzidas por pessoas sem formação política, ideológica ou histórica – problema similar ao identificado em Eddington -, La Ola inclui cenas como a que traz a mãe de um acusado lamentando publicamente que seu pobre filho não recebeu oportunidade de defesa adequada; outra na qual homens denunciados repetem ladainhas sobre como têm mãe/esposa/irmã/filha ou como "todos que (os) conhecem sabem que jamais faria algo assim"; e alegações de "caça às bruxas" promovida por feministas vingativas. Estas reproduções de lugares-comuns, entretanto, jamais oferecem qualquer perspectiva que enriqueça o debate, limitando-se apenas à constatação óbvia de como são frequentes e estúpidas.
Mas a coisa piora: assim como Partir un jour, filme de abertura do festival, La Ola se insere no subgênero do "musical surpresa" – produções que não se apresentam inicialmente como pertencentes ao gênero, mas que gradualmente revelam esta natureza através de canções que soam improvisadas e pouco melódicas. Intensificando-se à medida que a história avança, esta abordagem narrativa culmina em um terceiro ato dominado por música ininterrupta e coreografias caóticas, resultando em uma cacofonia insuportável que traz personagens de ambos os lados do conflito essencialmente gritando suas posições políticas durante a meia hora final de projeção. Para piorar, em vez de utilizar o elemento musical como recurso estético para contrastar com os temas densos (o que poderia ser interessante), o longa opta por um espetáculo de gosto duvidoso – como na sequência ambientada em uma delegacia na qual uma vítima de estupro é questionada sobre suas roupas enquanto a coreografia remete a movimentos sexuais sem se atentar para as implicações éticas desta escolha.
Como se não bastasse, o projeto repete continuamente os mesmos argumentos políticos superficiais, pecando também ao transformar o caso específico da protagonista em uma síntese de todos os problemas enfrentados pelas mulheres sob uma estrutura patriarcal, como se uma única situação particular pudesse resumir adequadamente a totalidade da experiência feminina. Aliás, questões essenciais como consentimento são abordadas superficialmente e – pior – tratam o relato de Julia como uma região acinzentada, como algo complexo e ambíguo, questionando se esta verbalizou explicitamente seu consentimento, se expressou claramente sua recusa ou se demonstrou interesse inicial apenas para mudar de ideia mais tarde – perguntas que são absolutamente irrelevantes quando consideramos que ela estava inconsciente durante o ato.
Igualmente problemático é o fato de a protagonista ser constantemente manipulada por personagens que seriam supostamente aliadas: seu caso pessoal é exposto publicamente contra sua vontade, ela é transformada em símbolo político apesar de afirmar que detesta se sentir como vítima, e eventualmente é esquecida pelas próprias defensoras, que se tornam mais interessados nas repercussões e oportunidades midiáticas do que em seu bem-estar psicológico. Com isso, o que poderia fomentar uma discussão sofisticada sobre a complexidade inerente a movimentos sociais amplos e ideologicamente diversos acaba soando como uma crítica problemática que parece sugerir como aquelas mulheres não conseguem se entender, sendo movidas mais pelo ego do que pela sororidade.
Revelando sua fragilidade também ao tentar construir metáforas profundas, La Ola invariavelmente recorre às escolhas mais óbvias, como ao trazer a protagonista falhando em alcançar uma nota musical aguda durante a cena inicial apenas para ouvir a professora declarando como a garota “pensa conhecer a própria voz” (e é claro que ao longo dos 129 minutos seguintes ela irá justamente descobrir esta “voz”). Finalmente, o longa conclui sua bagunça em um terceiro ato desarticulado no qual se perde completamente em simbolismos narrativos inconsistentes – como ao retratar paredes sendo demolidas para revelar cômodos/objetos ocultos, mas sem qualquer clareza conceitual: as tais paredes representariam as barreiras sociais enfrentadas pelas mulheres em instituições patriarcais ou traumas psicológicos reprimidos? Em vez de explorar qualquer uma destas possibilidade, o filme opta por incluir uma sequência pavorosa na qual várias jovens renegam os próprios pais, já que estes seriam representantes do patriarcado – e uma personagem chega a ligar para o pai, um motorista de Uber que trabalha exaustivamente para financiar a educação da filha, apenas para dizer "você não é mais meu pai" - mesmo sem haver qualquer sugestão de que o sujeito exiba um comportamento reprovável e machista.
Ignorando sistematicamente questões relevantes de classe socioeconômica e identidade racial – interseccionalidades cruciais no movimento feminista contemporâneo –, La Ola ainda parece defender implicitamente a problemática ideia de que a expressão artística se torna mais autêntica e rica quando originada da dor do artista, romantizando perigosamente a associação entre trauma psicológico, depressão clínica e criação artística significativa.
Já se candidatando a pior filme de 2025, esta produção basicamente reúne as complexidades e nuances das violências cometidas contra mulheres em uma sociedade patriarcal, mistura todas as mensagens políticas possíveis sem qualquer coerência ideológica e despeja tudo em sequências visualmente elaboradas nas quais a câmera em constante movimento captura coreografias velozes com a esperança de que esta abordagem caótica resulte magicamente em algo relevante, revelador ou revolucionário. O efeito alcançado, porém, é precisamente o oposto, trazendo uma obra surpreendentemente conservadora em sua mensagem e fracassada como experimento visual.
12) Embora se apresente formalmente como um filme de terror através de suas convenções visuais, de sua abordagem narrativa inquietante e da trilha sonora evocativa, A Praga não gira em torno de ameaças sobrenaturais ou vilões indestrutíveis típicos do gênero, mas sim daquele que pode ser considerado um dos períodos mais aterrorizantes da experiência humana: a adolescência. Esta fase de descobertas constantes – algumas que proporcionam alegria, prazer e encantamento genuínos, outras que provocam angústia e desorientação – é caracterizada fundamentalmente por uma profunda insegurança em relação ao mundo e à própria identidade em formação, constituindo um momento de crise permanente. Para piorar, administrar estas ansiedades se torna quase impossível graças à falta de experiência de vida e à imaturidade emocional naturais da idade – e o fato de tantos adultos adotarem uma postura condescendente diante destas crises, sugerindo que “o tempo demonstrará que não eram tão graves/importantes”, revela apenas como ignoram que, para o adolescente imerso em sua experiência imediata, aquela vivência é intensa, significativa e avassaladora; a legitimidade de um sofrimento psicológico não deve ser medida pela perspectiva temporal oferecida pela distância cronológica, mas pela dor com que é vivenciado no presente.
E é neste território psicológico complexo que o longa de estreia do cineasta Charlie Polinger estabelece suas bases narrativas e temáticas. Escrito pelo próprio diretor, o roteiro se passa em uma escola durante um programa de verão no qual os pais podem deixar seus filhos pré-adolescentes e adolescentes para que participem de diversas atividades. Dormindo nos alojamentos do colégio, os jovens passam por uma convivência intensa, criando subgrupos com suas próprias regras, hierarquias implícitas e códigos de conduta estabelecidos – algo que Ben (Everett Blunck), protagonista da obra, descobre ao ser inscrito pela mãe para participar do programa de polo aquático da instituição. Recém-chegado à cidade, o garoto se vê então duplamente deslocado, tendo que se adaptar não só à nova residência, mas à dinâmica de um grupo já entrosado e cuja hostilidade se torna patente através da forma cruel com que um outro menino, Eli (Kenny Rasmussen), é tratado. Vitimado por problemas dermatológicos típicos da idade (e possivelmente por algum tipo de dermatite), Eli é acusado de ser infectado com “a praga”, que pode ser interpretada simultaneamente como uma condição biológica objetiva e como uma construção social subjetiva. Isto, claro, coloca Ben em uma posição de se ver dividido entre a empatia natural e instintiva que sente pelo isolamento de Eli e a pressão social para se integrar ao grupo liderado pelo carismático e maniqueísta Jake (Kayo Martin).
Estabelecendo um tom inquietante desde a sequência inicial, que situa o espectador no fundo de uma piscina na qual os personagens mergulham, perturbando a tranquilidade da água, A Praga emprega a câmera lenta, o azul sufocante e a brilhante trilha sonora de Johan Lenox para deixar evidente que os 90 minutos seguintes serão de incômodo constante. Aliás, a música de Lenox é essencial ao evocar certo tribalismo primal presente na dinâmica que o longa retrata e que envolve uma “cultura” rigidamente definida por aqueles adolescentes – que, claro, emulam os comportamentos uns dos outros para garantirem a aceitação mútua. E mais: utilizada em momentos aparentemente prosaicos, a trilha eleva estas passagens a experiências que remetem a pesadelos, como, por exemplo, na cena em que Ben se vê isolado na piscina ao perceber que ninguém irá lhe passar a bola durante uma partida, disparando gatilhos adolescentes como o pânico diante da possibilidade do embaraço e da exclusão.
Neste sentido, a performance de Rasmussen como Eli, portador original da “praga”, é interessante, já que eventualmente podemos constatar que se trata de um garoto com um senso de humor peculiar e surpreendentemente confortável consigo mesmo. Sim, há sugestões da existência de um quadro de neurodivergência que talvez aumente sua dificuldade de interação social, mas o problema não reside nesta condição e sim na falta de compreensão sobre suas implicações (a história se passa em 2003). Enquanto isso, Jake, líder do grupo, é beneficiado pela fantástica performance do estreante Kayo Martin, que desde sua primeira aparição comunica através do olhar um julgamento interior constante com relação a todos que o cercam, como se estivesse sempre em um monólogo interno carregado de sarcasmo e de um imenso senso de superioridade - que, paradoxalmente, revela para o espectador sua fragilidade emocional. Logo no princípio da projeção, por exemplo, o garoto faz um comentário casual sobre estar participando do programa pela segunda vez consecutiva depois que o pai o inscreveu "por engano" – uma mentira óbvia que aponta para uma situação familiar problemática para a qual ele talvez encontre alívio ao destratar alguns de seus colegas.
Igualmente triste é testemunhar as dinâmicas de gênero entre aqueles pré-adolescentes, que demonstram uma necessidade terrível de proclamar a própria “masculinidade” através da agressividade e das conversas performativas sobre as meninas que participam do programa, discutindo inclusive suas “experiências” sexuais que são claramente invenções para estabelecer status – e se alguns daqueles jovens demonstram aparente conforto com esta dinâmica tóxica, outros claramente seguem o comportamento social dominante para garantir aceitação mínima, enquanto um terceiro grupo manifesta culpa visível por suas ações, mas carece de força moral (estou sendo rigoroso; é melhor dizer “maturidade”) para questionar abertamente o comportamento coletivo.
Pois o que frequentemente falta ao adolescente é a percepção de que a “praga" que leva à exclusão tem, como cura, a compreensão acerca do próprio valor intrínseco, individual, que não precisa necessariamente de uma validação externa – mas considerando como esta percepção também falta a boa parte dos adultos, é injusto esperar que ocorra a indivíduos tão jovens.
13) Há um eco temático curioso entre La petite dernière, exibido na mostra competitiva de Cannes deste ano, e Drømmer, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim: ambos giram em torno de jovens mulheres que, prestes a entrar na fase adulta, descobrem não apenas o primeiro amor, mas a própria homossexualidade. A diferença é que naquela produção norueguesa a orientação sexual da protagonista não constituía um problema significativo ou fonte de conflito narrativo, já para sua família progressista não representava um obstáculo moral ou social, ao passo que neste longa francês o dilema da personagem se torna claro desde o primeiro segundo de projeção quando a vemos realizando as abluções que a identificam como muçulmana preocupada com os ritos e os dogmas de sua religião.
Interpretada pela estreante Nadia Melliti, Fatima tem um namorado pelo qual demonstra absoluta falta de entusiasmo emocional ou atração física (e as falas machistas do sujeito não colaboram), mantendo o relacionamento escondido da família por razões que inicialmente parecem relacionadas às expectativas culturais, mas que logo se revela como uma experimentação consciente, uma tentativa deliberada de avaliar sua capacidade de se conformar às expectativas sociais que pesam sobre ela. Esta racionalidade, contudo, não diminui seu sofrimento – e quando a vemos chorando sozinha por se saber lésbica, as lágrimas não vêm de uma homofobia internalizada, mas da certeza de que terá que lidar com as pesadas consequências que o reconhecimento público desta identidade trará em seu contexto específico.
Adaptado pela diretora Hafsia Herzi a partir do livro de Fatima Daas, o roteiro investe em uma estrutura ancorada nas estações do ano, que aqui funcionam mais como marcadores simbólicos de estados emocionais do que como indicadores cronológicos literais, já que a narrativa possivelmente se estende por dois ou três anos. Durante este período, a protagonista acaba por demonstrar um pragmatismo curioso ao lidar com sua jornada de autodescoberta, utilizando um aplicativo de relacionamentos para conhecer outras mulheres não necessariamente com o objetivo de buscar sexo, mas de poder conversar com pessoas mais experientes que talvez possam trazer alguma luz sobre o que esperar do mundo e como lidar com as possíveis condenações de familiares e amigos. Vivenciando suas primeiras experiências sexuais e o inevitável envolvimento emocional que estabelece com a enfermeira Ji-Na (Park Ji-min), Fatima passa por um processo de libertação emocional e psicológica que se torna mais evidente nos momentos em que, longe da família, pode ser autêntica, sem se render à necessidade de esconder aspectos fundamentais de sua identidade – e o fato de não poder abraçar esta identidade no ambiente familiar é algo que se torna cada vez mais doloroso.
Não que sua família seja particularmente conservadora, já que Herzi retrata a mãe e as irmãs da protagonista como figuras calorosas e afetuosas (mesmo seu pai, embora sempre na periferia da narrativa, é visto com simpatia); sua mãe, em especial, demonstra imenso orgulho das três filhas, celebrando as conquistas acadêmicas que, não é difícil concluir, facilitarão uma maior independência. E a questão, portanto, é: esta mãe amorosa aceitaria a verdadeira identidade da filha ou o peso das tradições religiosas e culturais prevaleceria sobre os laços familiares?
Um sinal negativo, por exemplo, vem de uma conversa que Fatima tem com o Imã da mesquita local, quando, buscando encontrar uma forma de reconciliar sua identidade sexual com suas crenças religiosas, procura aconselhamento espiritual e ouve apenas bobagens carregadas de preconceito e ignorância que servem apenas para intensificar seu sofrimento e torná-la ainda mais insegura com relação à possível reação de sua família. E este é, em essência, o drama central da narrativa (e da vida de tantas pessoas em situação similar): a tentativa por vezes impossível de trazer harmonia entre uma fé religiosa sincera e a identidade sexual que representantes desta mesma fé insistem em condenar. Um dos resultados deste embate desnecessário é a solidão: quando sofre uma desilusão amorosa, por exemplo, Fatima não se sente livre para recorrer às suas confidentes habituais (a mãe e as irmãs), o que apenas intensifica seu isolamento e sua dor.
Ancorado na performance complexa e sutil de Nadia Melliti, La petite dernière impressiona pela transformação gradual da protagonista; comparar quem ela é no início e no fim da narrativa é testemunhar duas versões quase irreconhecíveis da mesma pessoa – não por inconsistência de caracterização, mas pela sensível representação de cada etapa de sua evolução pessoal.
17 de Maio de 2025