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Festival de Cannes 2025 - Dia #05 Festivais e Mostras

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Dia 5

14) A trajetória profissional de Kristen Stewart é fascinante: depois de ver algumas de suas escolhas artísticas ironizadas em função de sua associação com a série Crepúsculo – e que, sejamos justos, muitas vezes se deviam mais à mediocridade do material original -, a atriz construiu uma carreira cada vez mais surpreendente, participando de projetos artisticamente ambiciosos e comercialmente arriscados que acabaram levando-a vencer o César (o Oscar francês) de Melhor Atriz Coadjuvante por Acima das Nuvens, tornando-se a primeira norte-americana a ser reconhecida pela premiação.

Pois se sua carreira como atriz já vinha se desenvolvendo de forma consistente, A Cronologia da Água, que marca sua estreia na direção de longas-metragens, inaugura uma nova etapa que sugere um potencial igualmente significativo: o que Stewart demonstra nesta obra revela não apenas coragem artística, mas uma ambição estética notável. Sim, a história pessoal da escritora Lidia Yuknavitch, marcada por tragédia e superação, poderia facilmente ter rendido um filme correto se abordada através das convenções seguras que cinebiografias adotam em Hollywood, mas “correto” parece não ser o bastante para a jovem cineasta, que opta por estratégias infinitamente mais desafiadoras tanto para si mesma como realizadora quanto para o espectador, que é levado a experimentar diretamente a subjetividade fragmentada da protagonista ao longo de sua vida marcada por traumas e a ver-se, assim, na perspectiva psicológica e emocional daquela personagem em seus momentos mais desesperadores.

Como se estes desafios já não fossem imensos, Stewart abraça outro igualmente complicado do ponto de vista cinematográfico: retratar visualmente o processo criativo de um escritor. Ora, se a representação do trabalho de atores, cineastas, dançarinos ou músicos apresenta relativa facilidade devido à natureza visual ou performática destas atividades, capturar a criação literária (que essencialmente envolve uma pessoa sentada diante do papel em branco ou da tela de computador) representa um obstáculo maior para qualquer realizador, especialmente um estreante - e ainda assim Stewart é bem-sucedida ao transformar este processo interno e silencioso em algo visualmente dinâmico e dramático.

Baseado nos escritos autobiográficos de Yuknavitch, aqui interpretada por Imogen Poots, A Cronologia da Água retrata os horrores de sua infância marcada por abusos físicos, emocionais e sexuais cometidos pelo próprio pai (vivido por Michael Epp) enquanto a mãe (Susannah Flood), dominada pelo alcoolismo e sem força psicológica para confrontar o marido, provoca suas próprias cicatrizes através da omissão – cicatrizes tão profundas que, em certo momento, depois de um raro gesto de coragem da mãe, a protagonista comenta em sua narração: "Naquele momento, eu quase a amei".

Igualmente triste é constatar como estes padrões de abuso tendem a se perpetuar na vida adulta das vítimas, que frequentemente passam a reproduzir de modo inconsciente comportamentos similares até que gradualmente aprendam a processar seus traumas e compreendam como estes afetam seus relacionamentos – algo que no longa fica evidente quando a protagonista passa a tratar o marido com brutalidade por não saber lidar com o afeto e a gentileza que recebe deste. Não que ela deseje ser maltratada; a questão é que ao longo da vida ela foi praticamente condicionada a acreditar que é assim que as pessoas tratam aqueles que supostamente amam. Enquanto isso, sua irmã Claudia processa tudo que viveu de um modo menos autodestrutivo, mas igualmente doloroso, já que exibe uma tristeza constante, profundamente enraizada, que atravessa cada momento de sua existência aparentemente funcional, já que se casou e se tornou mãe - e a performance de Thora Birch, que evoca esta melancolia permanente através do olhar da personagem, merece fartos aplausos.

Aliás, Stewart demonstra sabedoria na escalação de seu elenco, que inclui ainda uma participação surpreendente de Jim Belushi como o escritor Ken Kesey, autor de Um Estranho no Ninho: associado a papeis cômicos durante toda sua trajetória profissional (assim como seu irmão John, precocemente morto por uma overdose), o ator vive o mentor literário da protagonista como um homem cuja excentricidade transcende o estereótipo e se apresenta como uma personalidade intelectualmente inspiradora em seu não-conformismo. Além disso, é admirável como a diretora (que, vale dizer, escreveu o roteiro ao lado de Andy Mingo, marido de Yuknavitch na vida real) jamais ignora como as experiências de Lidia não lhe permitem esquecer a ameaça em potencial que figuras masculinas representam – e assim, quando Kesey abraça a protagonista em um gesto aparentemente paternal, tanto a personagem quanto o espectador experimentam uma apreensão momentânea temendo que aquela demonstração de afeto subitamente revele intenções predatórias. E não é à toa que somos condicionados a ecoar o medo da escritora, já que, mesmo evitando retratar os abusos por esta sofridos de forma gráfica (o que é um alívio), Stewart é hábil ao utilizar sugestões visuais como substitutas eficazes: durante boa parte do primeiro ato, por exemplo, vemos apenas partes do rosto do pai de Lidia – nariz, boca, maxilar –, mas raramente seus olhos, o que intensifica o aspecto ameaçador de sua presença.

Rodado pelo diretor de fotografia Corey C. Waters em 16mm – uma escolha incomum na era digital –, A Cronologia da Água conta com uma textura granulada que contribui para estabelecer a sensação visual de memórias resgatadas - não como nostalgia estética, o que seria inadequado de um ponto de vista emocional diante das terríveis experiências da protagonista, mas como um registro visual deliberadamente imperfeito que sugere a solidificação de memórias fragmentadas e da melancolia/tristeza que estas inevitavelmente trazem. Da mesma forma, esta abordagem visual é refletida na paleta de cores sempre evocativa: em determinada passagem, por exemplo, a personagem adulta é vista em uma banheira compartilhando um momento doloroso com a irmã em um ambiente frio e dessaturado até que, em um corte abrupto, somos levados a um instante paralelo da infância em que as irmãs surgem também em uma banheira, mas agora em uma paleta quente e viva que reflete a pequena ilha de segurança que representavam uma para a outra.

O trabalho da montadora Olivia Neergaard-Holm, por sinal, é de um brilhantismo único, utilizando frequentemente cortes secos precisos, ocasionalmente quase subliminares, que ilustram visualmente a natureza fragmentada das memórias de Lidia. Além disso, a falta de linearidade cronológica da narrativa, que envolve constantes elipses que vão e voltam no tempo, sugere como as dores do passado colorem a percepção do presente – e uma vitória profissional, por exemplo, pode gerar uma breve alegria até ser emocionalmente manchada por flashbacks intrusivos de uma rejeição passada. Aliás, esta talvez seja uma das qualidades mais fascinantes do filme: sua capacidade de retratar a personagem simultaneamente de forma objetiva, externamente observável (seu comportamentos e suas ações) e de modo subjetivo, expondo sua vida interior (suas emoções e seus pensamentos).

Um exemplo maravilhoso desta estratégia surge em uma cena de um virtuosismo narrativo admirável e que traz a protagonista em uma leitura pública de um conto autobiográfico: alternando fluidamente entre perspectivas complementares – mantendo o mesmo monólogo como constante sonora, mas variando a fotografia, os enquadramento e temperatura das cores –, Kristen Stewart demonstra visualmente como há duas leituras ocorrendo simultaneamente: a externa, presenciada pela plateia que se encontra diante de Lidia no evento literário, e a interna, que revela como aquela mesma leitura afeta emocionalmente a protagonista ao levá-la a recordar e reviver suas experiências traumáticas.

Para completar, como já apontado, o longa realiza a proeza de retratar o processo criativo literário com eficácia, ilustrando como passagens inteiras por vezes surgem em flashes desconectados que resultam do processamento/reelaboração das memórias através de racionalizações que também podem emergir como insights bruscos. Mais: o filme captura com precisão uma sensação familiar a quem vive da escrita: a euforia - rara – quando subitamente o escritor percebe ter escrito algo que reflete exatamente o que queria dizer, com as palavras se encaixando na ordem perfeita para expressar precisamente o pensamento ou emoção desejados.

Ancorado pela performance extraordinária de Imogen Poots, A Cronologia da Água é um feito que estabelece Kristen Stewart como uma artista multidisciplinar, como uma realizadora com potencial para desenvolver uma carreira atrás das câmeras capaz de rivalizar com aquela – admirável – que construiu diante delas.

15) Antes de discutir Nouvelle Vague, segundo filme realizado por Richard Linklater em 2025 (o primeiro foi o excelente Blue Moon, exibido na competitiva da Berlinale), preciso estabelecer um ponto importante que talvez até soe como sacrilégio partindo de um crítico de cinema: sinto uma antipatia profunda por Jean-Luc Godard. Não nego, claro, sua importância histórica como realizador; porém, é preciso reconhecer como o culto em torno de sua figura se tornou tão absurdo que frequentemente são atribuídas a ele responsabilidades por inovações que simplesmente não lhe pertencem – e recentemente vi até mesmo perfis em redes sociais creditando o francês pela quebra da quarta parede, um recurso existente desde os primórdios do Cinema mudo. Aliás, vou além: tampouco compartilho do entusiasmo convencional por Acossado, que, embora notável por certas escolhas formais, é terrivelmente juvenil (no pior sentido da palavra) em suas preocupações e representações; sua suposta profundidade deriva mais das lacunas interpretativas que o espectador preenche com suas próprias reflexões do que de elementos efetivamente presentes na obra.

Pois Nouvelle Vague é, em essência, uma elaborada homenagem metalinguística ao filme, sua produção há muito mitificada e, naturalmente, ao próprio Godard como uma das figuras centrais do movimento que dá título ao longa. Demonstrando fascínio reverencial por este período específico da história do Cinema francês – fascínio (aí, sim) compreensível -, Linklater adota aqui um enfoque que, justamente por concentrar-se em Acossado, por vezes parece minimizar a importância dos demais nomes associados à “nova onda” (incluindo alguns que podem ser defendidos como superiores a Godard em termos de inventividade formal e consistência narrativa, como Truffaut e Resnais, além, claro, de minha adorada Agnès Varda - embora os próprios integrantes masculinos do movimento frequentemente demonstrassem certa resistência em considerá-la oficialmente parte do grupo, revelando um sexismo estrutural decepcionante).

Frequentemente interrompendo a progressão da narrativa para apresentar personagens significativos olhando diretamente para a câmera - numa postura quase brechtiana – enquanto identifica cada um através de legendas que revelam seus nomes, o filme reconhece que muitos destes não são fundamentais para desenvolver sua premissa específica, mas ainda assim exibe prazer inequívoco em incluí-los como personagens em sua reconstrução do período. Nesse sentido, é fácil constatar o prazer quase infantil (agora, no melhor sentido da palavra) de Linklater ao criar breves momentos aparentemente insignificantes, como ao mostrar Roberto Rossellini discursando na redação da Cahiers du Cinéma apenas para, em seguida, embolsar alguns canapés em um gesto humanizador (ou mesmo dessacralizador). Outro exemplo pode ser visto quando, ao retratar a filmagem Acossado, inclui uma passagem na qual Jacques Rivette faz uma ponta como um homem atropelado – papel minúsculo que mal aparece no filme original, mas que Linklater utiliza como pretexto para mostrar uma conversa ficcionalizada entre Godard e o amigo.

O irônico é que o já mencionado esforço para desconstruir figuras como Rossellini e Truffaut jamais é aplicado ao próprio Godard, cuja arrogância característica (vista pelos admiradores como sinal de sua superioridade intelectual e artística) é simbolizada por seu hábito afetadamente blasé de usar óculos escuros como se estes estivesse colados ao seu rosto, mantendo-os mesmo em ambientes internos e noturnos e criando, com isso, uma aura de mistério artificial que contribuía para sua automitificação cuidadosamente construída. Ao mesmo tempo, a composição carismática de Guillaume Marbeck confere ao realizador uma simpatia que mesmo seus defensores mais fanáticos hesitariam em enxergar – uma decisão compreensível por parte do ator, já que encarnar com precisão o homem que viria a afastar todos os amigos talvez exigisse demais do espectador.

Ainda assim, Nouvelle Vague inclui passagens pontuais que ilustram esta arrogância monumental: ao discutir a possibilidade de trabalhar com Jean Seberg, por exemplo, Godard questiona se a atriz "já viu meu trabalho" – uma pergunta absurdamente presunçosa considerando que àquela altura ele praticamente não possuía filmografia significativa, tendo dirigido ou co-dirigido três ou quatro curtas-metragens tecnicamente inconsistentes. Já outros elementos que particularmente considero como exemplos negativos de seu caráter são retratados por Linklater como se fossem peculiaridades sintomáticas de seu gênio (ou, no mínimo, como excentricidades divertidas) – como ao roubar dinheiro da redação para financiar sua viagem a Cannes ou ao exibir verdadeira compulsão em recitar máximas pseudofilosóficas como substitutas de conversas reais que exigiriam argumentos e investimento emocional.

Aliás, a adoração a Godard demonstrada por Linklater resulta na conversão de Jean Seberg em antagonista, transformando as interações entre diretor e atriz em constante fonte de conflito – e sempre garantindo que esta seja vista como empecilho à genialidade daquele. Porém, quase todas as suas reclamações são no mínimo razoáveis, como seu desconforto com a ausência de um roteiro que a obriga a tentar descobrir a essência de cada cena momentos antes de filmar – e mesmo que Acossado não tenha sido rodado com som direto (algo relativamente comum na produção europeia da época, especialmente considerando o ruído mecânico excessivo da câmera Eclair), o fato de os diálogos serem dublados na pós-produção não eliminava a necessidade de que várias das falas fossem decoradas, já que durante os primeiros planos (closes) os movimentos dos lábios ficavam visíveis. Dito isso, Linklater extrai humor da falta de som direto: ao rodar o clímax de Acossado, por exemplo, Jean-Paul Belmondo (Aubry Dullin, excelente), simulando ter sido baleado e cambaleando dramaticamente pela rua, aproveitar estar de costas para a câmera para tranquilizar os transeuntes confusos.

Neste sentido, este elemento específico reflete outro aspecto interessante da produção original: seu caráter quase de cinema de guerrilha, com cenas filmadas sem autorização oficial e empregando câmeras estrategicamente escondidas em carrinhos improvisados. Do mesmo modo, Nouvelle Vague explora o estilo de direção idiossincrático de Godard, com planos rodados com rapidez (depois de longos intervalos para que ele reflita sobre o que pretende dizer) e que se limitavam boa parte das vezes a uma única tomada – independentemente de possíveis imperfeições técnicas, como erros óbvios de continuidade (algo justificado pelo argumento questionável de que tais erros "refletem autenticamente a realidade", como se alterações inexplicáveis na diegese fossem “genuínas” apenas por apontarem uma falta de interferência por parte do realizador).

Considerando tudo isso, talvez o grande herói de Nouvelle Vague seja não Godard, mas seu primeiro assistente de direção, Pierre Rissient (Benjamin Clery), que mantém a produção de pé apesar do comportamento errático e frequentemente irresponsável de seu superior (como filmar uma única tomada pela manhã e então se declarar “sem inspiração criativa”, encerrando a diária sem levar em consideração o tempo de sua equipe e o orçamento do projeto). Não é acaso, portanto, que um dos poucos momentos planejados com maior cuidado em Acossado seja responsabilidade de Rissient e do diretor de fotografia Raoul Coutard, que, para capturar o plano em que Belmondo se apoia em um automóvel enquanto as luzes da Champs-Élysées se acendem ao fundo, cronometraram o horário específico em que a iluminação pública era ativada.

Determinado não só a recriar a produção de Acossado, mas a homenageá-lo, Linklater incorpora diversas referências visuais ao original: um carro que cruza uma estrada vazia em alta velocidade, conversas intimistas rodadas do banco traseiro do veículo e até as características “marcas de cigarro” que indicavam o fim do rolo de filme para que o projecionista pudesse acionar o seguinte. E ainda que tudo isso possa trazer alguma diversão para os cinéfilos, a pergunta que surge ao fim de Nouvelle Vague é: “qual o propósito artístico ou intelectual do projeto”? Ainda que ofereça algum entretenimento, o longa não revela absolutamente nada sobre Godard ou seu filme que já não seja de amplo conhecimento público – e, assim, acaba por remeter à refilmagem de Psicose feita por Gus Van Sant em 1998.

A resposta óbvia é que a produção parece ter sido concebida primariamente para proporcionar a Linklater o prazer pessoal de “refilmar” Acossado - ou pelo menos o de documentar ficcionalmente sua produção, o que lhe permite reencenar não apenas passagens do original, mas reconstruir ambientes inteiros, como ao recriar em estúdio o apartamento de Patricia, que originalmente era uma locação (um quarto de hotel). Além disso, o cineasta norte-americano se mostra tão determinado a perpetuar a aura mítica de Godard que, ao abordar a montagem do filme de 1960 (que, sim, foi inovadora no uso dos cortes secos para criar elipses abruptas dentro de planos contínuos), traz o francês articulando esta abordagem formal como se tivesse sido um conceito teoricamente premeditado em vez de um acidente feliz originado da necessidade prática de reduzir significativamente a duração do filme para viabilizar sua distribuição comercial. Admirador de André Bazin (como todos na Cahiers du Cinéma), Godard havia concebido planos longos, sem cortes, o que impossibilitava a implementação de raccords durante a montagem (uma tarefa que se tornou ainda mais complicada em função da ausência de tomadas de cobertura) e, portanto, a única solução encontrada foi justamente a de implementar as elipses – uma realidade bem distinta daquela apresentada por Nouvelle Vague.

Podendo se dar ao luxo também de ignorar a falta de caráter de Godard, já que suas ações vis contra Truffaut e Varda ainda estavam no futuro, Linklater acaba por idealizar um homem que simplesmente não existia, ignorando as lições de seu outro longa de 2025, Blue Moon, que se enriquecia justamente graças à complexidade moral de seu protagonista.

16) Para quem assistiu a Precisamos Falar Sobre o Kevin ou Você Nunca Esteve Realmente Aqui, obras anteriores de Lynne Ramsay, a capacidade da cineasta de mergulhar o espectador na subjetividade de seus personagens não é novidade: são filmes que, embora possuam tramas específicas, priorizam a experiência interior dos protagonistas – seus estados emocionais, sua relação com o mundo e, principalmente, um profundo sentimento de impotência diante dos acontecimentos.

Pois todos estes elementos atravessam Die My Love, seu novo trabalho apresentado na competição oficial de Cannes este ano.

Adaptado do livro de Ariana Harwicz pela própria diretora ao lado de Enda Walsh e Alice Birch, o roteiro explora a turbulência interior de sua protagonista, Grace (Jennifer Lawrence), que se muda com o marido Jackson (Robert Pattinson) para uma casa próxima à cidadezinha em que este foi criado – uma propriedade que pertencia ao tio do sujeito e que ali cometeu suicídio. Embora confortável e espaçosa, a casa é situada em uma área isolada, dificultando o convívio de Grace, que está no período final de gestação, com qualquer outra pessoa.

Ainda que tudo isso possa soar como a premissa de uma obra de terror, Die My Love não traz elementos sobrenaturais em sua narrativa – o que não impede que a existência da protagonista assuma tons terrivelmente opressivos. Aliás, o plano inicial do longa já revela muito ao surgir como um quadro estático que revela a expansão do andar térreo da casa, incluindo a cozinha, as salas e a porta de entrada, trazendo paredes cobertas por padrões de cores tristes que surgem contrastando com as cores vivas da roupa de Grace e complementando as de seu marido, indicando desde o princípio como ela jamais se sentirá à vontade naquele lugar. Além disso, ao sobrepor os batentes de várias portas, o enquadramento cria um tom claustrofóbico que se manterá durante toda a projeção, quando frequentemente veremos aquela mulher através de frestas de portas entreabertas ou sob batentes – algo ressaltado pela razão de aspecto reduzida (1.33:1).

Enquanto isso, o inteligente desenho de som nos aproxima ainda mais das experiências emocionais e psicológicas de Grace, seja ao trazer uma canção que subitamente se torna acelerada sem que ninguém a corrija, seja ao salientar o zumbido de um mosquito enquanto a personagem conversa com a sogra (Sissy Spacek). Da mesma forma, quando Jackson compra um cãozinho sem consultar a esposa (ampliando suas já vastas responsabilidades cotidianas), o latido do animal se torna uma constante, criando no público a mesma sensação de ansiedade contínua e frustração que a protagonista experimenta.

E estas ansiedades já são muitas, incluindo a pressão da maternidade e das massacrantes pressões sociais depositadas sobre toda mulher que dá à luz através da expectativa de que se tornem mães perfeitas a partir do primeiro choro do bebê. Este sentimento é ilustrado, por exemplo, quando Grace celebra os seis meses de nascimento do filho e comenta casualmente que “uma mãe de verdade teria assado o bolo” em vez comprá-lo – algo que revela sua percepção injustamente autocrítica (principalmente porque constatamos que é uma mãe afetuosa e preocupada) e também indícios de uma possível depressão pós-parto.

Soma-se a tudo isso a mágoa crescente diante da negligência emocional e sexual por parte do marido, além da profunda solidão, já que ele permanece fora de casa boa parte do tempo. Neste aspecto, é tocante testemunhar a reação de Grace quando, ao conversar com o marido pelo telefone, nota que este se encontra em um restaurante, descobrindo que ele está tomando cerveja e comendo um hambúrguer – e ao ouvi-la perguntar como está o gosto do sanduíche, constatamos como simplesmente sair de casa para uma refeição se tornou para ela uma possibilidade distante. Para piorar, qualquer prazer sexual só pode ser alcançado através da masturbação, o que se apresenta como uma questão ainda mais grave diante da natureza sexual intensa da personagem.

Oferecendo a Jennifer Lawrence a oportunidade de criar uma de suas melhores performances, Die My Love traz a atriz como uma figura cuja angústia crescente eventualmente resulta em uma irritação generalizada com o mundo e em ações impensadas e autodestrutivas – e é mérito de Lawrence que, mesmo chocados diante de certas atitudes, compreendamos perfeitamente as raízes de seu comportamento. E mais: quando em determinado momento alguém lhe pergunta como está se sentindo, sua resposta – um "Estou bem" acompanhado de um sorriso – é contraposta ao seu olhar vazio que evidencia a ausência de qualquer sensação de bem-estar.

Robert Pattinson, por sua vez, segue resistindo à possibilidade fácil de desenvolver uma carreira de galã convencional, parecendo constantemente determinado a demolir qualquer imagem de protagonista tradicional – o que é uma sorte para os admiradores de seu talento como ator. Aqui, por exemplo, ele encarna um homem cuja impotência emocional é rivalizada apenas por sua falta de companheirismo, transformando Jackson em uma fonte contínua de frustração.

Abrindo a projeção com uma bela floresta que entra em aparente combustão espontânea, Lynne Ramsay emprega esta imagem como uma metáfora visual eficiente daquilo que a protagonista experimentará internamente – com a diferença de que, longe de ser espontânea, sua “combustão” é reação não apenas a um desequilíbrio hormonal relativamente comum após o parto, mas principalmente à falta de compreensão do marido diante de suas necessidades – não apenas sexuais, mas de companhia e apoio emocional.

18 de Maio de 2025

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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