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Dia 6
18) Um dos aspectos mais fascinantes em acompanhar a evolução da carreira de um cineasta é perceber não apenas o desenvolvimento de seu estilo visual e narrativo, mas também identificar os temas que lhe são caros e a maneira como a abordagem destes temas se transforma ao longo do tempo. Na trajetória de Kleber Mendonça Filho, por exemplo, alguns elementos recorrentes se destacam: o questionamento do status quo e, principalmente, a forma como este sistema tenta se impor e oprimir aqueles que não detêm o poder; uma nostalgia palpável em relação aos espaços urbanos, particularmente Recife; e um amor profundo pelo cinema e sua história. Todos estes elementos convergem de maneira orgânica, bela e eficiente em O Agente Secreto, seu mais recente trabalho exibido na mostra Competitiva do Festival de Cannes de 2025.
Aliás, a projeção já começa estabelecendo um tom profundamente nostálgico: ambientado em 1977, o filme abre com imagens estáticas que remetem a obras do cinema brasileiro da era, à televisão da época, a figuras como Chacrinha e Os Trapalhões, às novelas – uma fascinação pelo período histórico que se estende à própria identidade cultural brasileira. Esta fascinação é refletida de certo modo pelo protagonista interpretado por Wagner Moura que, viajando de carro, estuda as frases escritas nos para-choques dos caminhões que vê na rodovia e encara com curiosidade divertida a fantasia do folião que o aborda em certo trecho da estrada – detalhes que revelam o interesse do próprio cineasta pela cultura popular em suas múltiplas manifestações. De forma similar, é significativo como o letreiro que abre a narrativa descreve aquele período como sendo de "muita pirraça" – eufemismo que estabelece um tom que, embora reconheça a seriedade e a complexidade daquele momento histórico, sugere também certa irreverência que ressoa na ambientação carnavalesca de Recife e na personalidade de vários dos personagens que conheceremos nos 158 minutos seguintes, funcionando como uma espécie de chave de leitura para a abordagem que o filme adotará.
Escrito pelo próprio Kleber, o roteiro gira em torno de Marcelo (Moura), um homem que retorna a Recife com uma identidade falsa que foi forçado a adotar por razões que compreenderemos ao longo da projeção – e que, sem saber, é perseguido por dois matadores profissionais. Determinado a reencontrar o filho pequeno depois do falecimento de sua companheira Fátima (Carvalho), Marcelo planeja buscar a criança para que possam morar em outro lugar, algo que entristece o compreensivo avô do menino, Seu Alexandre (Francisco). Há, claro, várias outras subtramas (envolvendo inclusive uma perna encontrada no estômago de um tubarão), mas, ainda que contenha elementos de suspense e ação, O Agente Secreto tem como principal força não a história em si (por mais que esta seja interessante), mas sua ambientação.
(Para ler a crítica na íntegra, clique aqui.)
19) Conhecido por criar narrativas contemplativas - longas produções que frequentemente ultrapassam cinco ou seis horas de duração -, o cineasta filipino Lav Diaz tende a construir suas narrativas a partir de quatros abertos e planos predominantemente estáticos e extensos, muitas vezes transformando cada cena em uma única tomada ininterrupta e que servem de moldura para suas preocupações temáticas recorrentes: as interseções entre fé, religião e poderes políticos e econômicos. Neste sentido, Magalhães, exibido fora de competição em Cannes, é um representante típico da filmografia do diretor. Por outro lado, trata-se da primeira grande produção internacional do realizador e de seu primeiro trabalho com um ator de renome global: o mexicano Gael García Bernal, que aqui encarna o navegador português que dá título ao projeto.
Com uma duração de 165 minutos - quase um curta-metragem para os padrões de Dia -, o filme acompanha cerca de 16 anos da vida de Fernão de Magalhães, que, primeiro a realizar a circum-navegação do globo, teve o Estreito de Magalhães batizado em sua homenagem e faz parte do grupo dos grandes navegadores da História como Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral, Bartolomeu Dias e Vasco da Gama (ainda que, para os latinos, a implicação elogiosa do adjetivo “grandes” seja questionável considerando a natureza colonialista, destrutiva e o legado de atrocidades humanas pavoroso daquelas expedições). Escrito pelo próprio diretor, o roteiro tem início em 1505, com as primeiras batalhas das quais o sujeito participou, passando pela conquista de Malaca em 1511, por seu eventual distanciamento da Coroa portuguesa e por sua aproximação do rei espanhol (que financiaria sua mais ambiciosa expedição) até chegar à sua morte em 1521, aos 41 anos de idade.
No entanto, o que interessa a Diaz não é a possibilidade de criar uma aventura histórica, mas sim um retrato sem qualquer romantização, evitando assim a tradicional estratégia de produções do tipo, que insistem em transformar o passado em espetáculo para as audiências contemporâneas. Assim, quando presenciamos um baile, por exemplo, não vemos o habitual salão grandioso com candelabros iluminando figurinos luxuosos, mas sim um ambiente apertado e escuro, com vestimentas que, embora suntuosas para os padrões da época, estão longe da opulência que normalmente atrai prêmios de figurino. Em vez disso, o mundo retratado em Magalhães é essencialmente cruel, primitivo e brutal. Além disso, o filipino investe em um naturalismo que é refletido pelo excelente desenho de som, que abandona trilhas épicas para se concentrar em ruídos diegéticos: durante as explorações na selva, ouvimos os sons da natureza e o correr da água nos rios; nas sequências marítimas, somos envolvidos pelo barulho das ondas, das tempestades, da madeira das caravelas se contraindo e das velas batendo contra o vento – uma imersão sonora que complementa a austeridade visual do longa.
Investindo em uma fotografia em cores que – aí, sim – cria um contraste com seus trabalhos habituais em preto e branco, Diaz (que assina a direção de fotografia ao lado de Artur Tort) adota uma paleta com tonalidades vivas, intensas, que ressaltam a beleza dos ambientes ainda intocados pelos invasores. Ainda assim, ao manter sua preferência por planos abertos, o cineasta subverte possíveis expectativas comerciais que poderiam surgir com a presença de um astro como García Bernal, já que em boa parte da projeção mal conseguimos distinguir seu rosto (não só em função da distância, mas das sombras provocadas pelo capacete que usa em várias cenas) - e o primeiro close do mexicano surge apenas na segunda metade do filme. Isto, contudo, só ressalta o talento do ator, que, mesmo com poucas falas e raramente ajudado por closes, consegue transmitir através de sua expressão corporal a evolução do personagem, substituindo gradualmente a segurança inicial por hesitação, medo, fragilidade e, finalmente, brutalidade — tudo com uma economia de gestos que mantém a sintonia com a abordagem minimalista de seu diretor.
Justificando o tom contemplativo da narrativa como modo eficaz de retratar a lógica temporal daquele período, tão distante da velocidade dos dias de hoje e de suas gratificações instantâneas, Magalhães transforma a expedição marítima em uma jornada exaustiva, torturante, muitas vezes parecendo acompanhar um barco à deriva no qual o tédio e a tensão constantes formam uma combinação perigosa que não demora a resultar em tentativas de motim. Ao mesmo tempo, Diaz e seu protagonista ilustram a brutalidade do navegador sem idealizações histórica: em determinado momento, por exemplo, quando dois marinheiros são flagrados em um ato sexual, Magalhães condena um deles à morte por "atos contra a natureza". Como se não bastasse, a ambição crescente do sujeito, que vem acompanhada de paranoia e autoritarismo crescentes, aos poucos parece converter o interesse exploratório em pura mesquinhez religiosa, com os esforços de conversão e evangelização das populações locais deturpando completamente a lógica da missão e do próprio Magalhães ao levar uma expedição quase científica em empreitada colonizadora.
O que nos traz à representação da violência pelo longa: se Truffaut afirmou (com propriedade) ser praticamente impossível fazer um filme antiguerra, já que a representação da violência na tela tem a tendência estética de torná-la excitante, Magalhães oferece uma solução peculiar para a questão ao se limitar a exibir os momentos após as batalhas. Assim, em vez retratar combatentes trocando tiros, tecendo estratégias de ataque e duelando com suas espadas, Lav Diaz se concentra nas consequências de tudo isso, preenchendo os quadros com uma praia coberta de corpos espalhados pela areia e, em outro instante, explicitando o resultado do extermínio de um grupo indígena ao mostrar dúzias de cadáveres em uma aldeia e na floresta. Além disso, o diretor escancara a naturalização daquela violência ao trazer personagens conversando despreocupadamente em meio a corpos em decomposição, o que funciona como um comentário visual poderoso sobre como a brutalidade colonizadora era normalizada por seus autores.
Ainda que não alcance o mesmo equilíbrio entre o tom contemplativo e um ritmo que mantenha a narrativa em movimento, como em A Mulher que se Foi e A Interrupção, por exemplo, é importante ressaltar que um filme pontualmente entediante não é necessariamente uma obra ruim; ao contrário, há muitas obras consideradas “lentas” que representam experiências maravilhosas – principalmente quando esta “lentidão” é um efeito deliberado e não defeito de execução. E Laz Diaz é um mestre nestes efeitos.
20) Em 2021, durante a edição do Festival de Cannes realizada em plena pandemia, uma das maiores surpresas foi a conquista da Palma de Ouro por Titane, dirigido pela francesa Julia Ducournau — apenas o segundo filme comandado por uma mulher a receber esta distinção (dois anos depois, Justine Triet se tornaria a terceira com Anatomia de uma Queda). A vitória surpreendeu não apenas pela estatística sexista do evento, mas também pela natureza singular da obra: um filme que, ao combinar elementos de drama tradicional com um terror surrealista, criava uma atmosfera pesada e angustiante controlada com segurança por uma diretora considerada relativamente inexperiente.
Assim, é natural que Alpha, seu filme seguinte, tenha gerado expectativas ao trazê-la de volta à competitiva de Cannes - e, como o anterior, este novo trabalho também gera angústia através de uma tensão constante criada pela combinação de drama e terror com aspectos surrealistas, abrindo a projeção já com a cena impactante de um homem que, viciado em heroína, tem as várias marcas de injeção em seu braço conectadas por uma linha desenhada por sua sobrinha, uma criança de cinco ou seis anos que não compreende a gravidade da situação. Trágica e evocativa, a imagem sintetiza a transmissão de traumas entre gerações que o longa irá explorar.
A partir daí, o roteiro também escrito por Ducournau salta no tempo e reencontra a menina, agora adolescente, tendo o braço (esquerdo, como o do tio) perfurado não por uma injeção de heroína, mas por um instrumento improvisado de tatuagem que marca sua pele com a letra "A" (simbolizando seu nome, que dá título ao projeto). Chocada ao descobrir o que a filha fez, a médica interpretada pela iraniana Golshifteh Farahani fica aterrorizada com a possibilidade de que a garota tenha contraído um vírus através da agulha compartilhada, desencadeando uma dinâmica que se tornará ainda mais complexa quando seu irmão (e tio da protagonista) ressurge em sua vida ainda tomado pelo vício. Aos poucos, Alpha (Mélissa Boros) e seu tio Amin (Tahar Rahim) estabelecem uma conexão marcada pela vulnerabilidade e pelo fato de ambos se tornarem prisioneiros da personagem de Farahani enquanto esta espera os resultados do exame de sangue da filha e tenta reabilitar o irmão dependente químico.
Desenvolvendo-se como um drama estruturado a partir das relações entre estes três personagens, o filme jamais esquece que uma destas pessoas é uma adolescente que, apesar das atitudes autodestrutivas e das evidentes restrições à figura materna, ainda reconhece a autoridade da mãe principalmente no que diz respeito à sua segurança: em certo momento, por exemplo, depois de demonstrar medo durante um procedimento médico, Alpha ouve a sugestão de uma enfermeira para que ela mesma aplique a injeção em segredo, rejeitando a ideia ao entender que só o fato de não poder contar à mãe já significa se tratar de algo arriscado - revelando a confiança infantil (e acertada) que ainda mantém na figura materna como protetora. Já em outra passagem igualmente tocante, a médica interrompe uma discussão tensa que mantém com a garota ao vê-la fazer uma confusão inocente, abraçando-a e beijando-a em uma reação quase involuntária de afeto que qualquer pai ou mãe reconhecerá facilmente. como aquele impulso irresistível diante da ternura inesperada de um filho.
Ainda assim, é a exaustão física e emocional crescente da personagem de Farahani que contribui para intensificar a ansiedade despertada pelo longa: dividida entre os cuidados com o irmão e incapaz de se tranquilizar mesmo quando o exame da filha não identifica a presença do vírus (o que a leva a manter a garota sob vigilância enquanto aguardam novos testes), a médica aos poucos tem as origens de seu instinto superprotetor exploradas pela narrativa sem que isso justifique a pressão exagerada que exerce sobre Alpha. Aliás, esta estrutura que intercala flashbacks aos incidentes do presente reflete uma escolha curiosa no que diz respeito à fotografia de Ruben Impens: se a maior parte da história, que se passa nos dias atuais, é apresentada em tons dessaturados e frios, criando uma atmosfera opressiva, o passado é continuamente visto através de cores mais quentes e intensas – algo inesperado, já que as memórias retratadas nada têm de agradáveis ou nostálgicas (sentimentos que habitualmente justificariam uma paleta mais saturada). Esta escolha aparentemente contraditória acaba por ser justificada conforme a projeção avança – e mesmo que a lógica resultante dependa de elementos decepcionantes do roteiro, a estratégia visual de Ducournau ao menos é coerente.
Infelizmente, há uma outra escolha narrativa feita pela diretora que nem as marcantes imagens resultantes conseguem justificar e que dizem respeito à natureza do vírus que aterroriza o universo do filme: transmitido sexualmente (com relações homossexuais sendo vistas pelos personagens como principal vetor de contágio, gerando atos de homofobia) e também por agulhas contaminadas e pelo contato direto com sangue infectado, o vírus causa uma doença que leva a um definhamento progressivo até a morte inevitável. Em outras palavras: trata-se evidentemente, mesmo sem menção explícita, de uma representação da AIDS, particularmente no contexto dos anos 80, quando a doença era uma sentença de morte e provocava pânico generalizado, além de intenso preconceito contra os portadores do vírus, que eram frequentemente marginalizados pela sociedade. Contudo, em vez de retratar a epidemia diretamente, Ducournau concebe um vírus que gradualmente transforma as pessoas em mármore e que, em estágios avançados, provocam tosses que eliminam pó até que seus corpos se petrifiquem totalmente.
Trata-se, como já mencionado, de uma escolha que resulta em imagens únicas; há uma beleza plástica perturbadora na transformação, com as diferentes tonalidades de mármore refletindo a pele das vítimas e criando imagens cuja estética fascinante apenas ressalta o horror da situação (além disso, a lógica da petrificação permite que, assim como em Titane, a cineasta invista no body horror e no gore). Em certa sequência que se passa em um clube de strip-tease, por exemplo, Ducournau traz indivíduos em diferentes estágios de infecção dançando com partes do corpo já marmorizadas, o que implica em movimentos ao mesmo tempo grotescos e hipnotizantes.
Mas… com qual propósito? O que a realizadora pretende dizer com esta alegoria específica? O que o filme ganha, como narrativa, ao converter o HIV em um vírus que transforma pessoas em mármore? Isto acrescenta alguma camada de significado ao longa além do impacto visual imediato? Infelizmente, a resposta parece ser negativa, com a escolha soando como mero artifício estilístico talvez resultante da expectativa gerada pela abordagem de Titane. Para piorar, o clímax envolve uma revelação que, além de previsível e clichê, é decepcionante em sua artificialidade, levando o longa a desmoronar em um momento crucial.
Apesar destes problemas graves, Alpha está distante de ser um fracasso completo (as performances de Farahani e Rahim são excelentes) – e torço para que seja apenas um tropeço aborrecido que servirá para inspirar sua obviamente talentosa diretora em seus passos seguintes.
19 de Maio de 2025