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Dia 7
21) Coragem é certamente algo que define o diretor iraniano Jafar Panahi - não apenas como cineasta, mas como cidadão e ativista. Punido diversas vezes pelo governo de seu país, o cineasta seguiu trabalhando clandestinamente mesmo sob ameaças e condições adversas, criando obras que jamais abandonaram as denúncias importantes e as críticas ao regime ainda que ciente de que isto traria consequências assustadoras. Com uma trajetória marcada por prisões, libertações, novas detenções e proibições de voltar a dirigir e de sair do Irã, Panahi produziu trabalhos de força indiscutível mesmo sob pressões absurdas, incluindo Isso Não É um Filme, Táxi Teerã, 3 Faces e Sem Ursos. E sua natureza contestadora não se mostra menos presente neste novo A Simple Accident (ou It Was Just an Accident), exibido como parte da mostra competitiva.
Abrindo a projeção com uma família em um carro, à noite, enquanto retornam de uma celebração, o filme logo chega ao acidente do título quando um cão é atropelado na estrada e os personagens são forçados a parar em uma oficina mecânica – e é ali que Vahid (Vahid Mobasseri) escuta o rangido provocado pela perna mecânica do motorista e acredita reconhecer o ruído como sendo aquele que acompanhava o caminhar do homem que o torturou quando se encontrava preso por “atividades antigovernamentais”. Não é à toa, portanto, que logo após o atropelamento do cão a filha pequena do motorista seja acalmada pela mãe, que tenta consolá-la dizendo que “Deus colocou esse animal em nosso caminho por alguma razão”, numa frase que sintetiza um dos temas centrais do filme: a ideia de que aqueles que cometeram atos terríveis inevitavelmente pagarão por eles.
Não que esta crença seja defendida pelo filme; trata-se, na realidade, de uma esperança expressada por um de seus personagens e que reflete apenas uma de várias posturas distintas vistas ao longo da narrativa. Pois o fato é que, depois de sequestrar Eghbal (Ebrahim Azizi) com o propósito de matá-lo, Vahid se torna inseguro quanto à identidade do sujeito e decide confirmá-la com a ajuda de um amigo que também foi torturado – que por sua vez o encaminha à fotógrafa Shiva (Mariam Afshari), também ex-prisioneira do regime, que se encontra justamente fazendo um ensaio de noivado com a amiga e ex-companheira de prisão Golrokh (Hadis Pakbaten) e com o companheiro desta, Ali (Majid Panahi, filho do diretor). E não demora muito até que todas estas pessoas – e mais o explosivo Hamid (Mohamad Ali Elyashmehr), outro ex-torturado – estejam amontoadas no furgão de Vahid, que também transporta Eghbal dentro de uma caixa de madeira.
Há, claro, certo elemento de caos divertido inerente a esta mistura de personalidades (principalmente considerando como Golrokh jamais tira seu vestido de noiva), permitindo que o cineasta explore seu senso de humor particular e que resulta em planos como aquele em que vemos aquelas figuras tão díspares empurrando o veículo estragado no meio do tráfego. Isso, porém, não elimina a urgência da narrativa, que envolve um período de menos de 24 horas enquanto o grupo atravessa Teerã tentando encontrar novas formas de confirmar a identidade do suposto torturador, sendo forçados continuamente a mudar de local sempre que acreditam ter sua segurança comprometida.
Mas o centro dramático de A Simple Accident reside nas discussões acerca do destino do prisioneiro: enquanto um aponta que não devem adotar as mesmas atitudes violentas de seus antigos algozes, sob pena de se rebaixarem ao mesmo nível moral, outro argumenta que, tendo destruído tantas vidas, os torturadores devem pagar pelo que fizeram. E até o noivo Ali, que nunca foi preso, é trazido para a discussão sobre o estado da sociedade iraniana (ou de qualquer sociedade sob um regime autoritário) quando Hamid o descreve como parte da "minoria silenciosa" – uma crítica direta à parcela da população que, mesmo ciente dos abusos de autoridade cometidos pelos governantes, mantém-se calada por conveniência pessoal. Esta dinâmica complexa culmina, por sinal, naquele que talvez seja o momento mais emblemático da narrativa, quando, em um longo plano, Panahi enfoca Hamid em um quadro mais aberto enquanto este discute com os demais e se movimenta nervosamente entre um e outro.
O problema é que estas discussões, até pela própria natureza da situação, não demoram a se tornar repetitivas à medida que os personagens tentam se convencer mutuamente acerca do acerto de suas posições particulares, repetindo ad nauseam os mesmos argumentos sem que isto altere a opinião dos companheiros. Ora, esta dinâmica pode até ser realista – quem já testemunhou ou participou de debates acalorados com indivíduos com crenças muito divergentes logo a reconhecerão -, mas de um ponto de vista dramático os resultados se tornam cansativos depois de ouvirmos o mesmo bate-boca com fundamentações idênticas pela terceira ou quarta vez em um curto espaço de tempo.
Além disso – e aqui evitarei detalhes para não incorrer em spoilers –, na segunda metade do filme os personagens tomam uma decisão que, admito, achei impossível aceitar por julgá-la absurda, artificial e inverossímil; não há suspensão de descrença que me permita acreditar que aqueles indivíduos naquela situação específica tomariam uma atitude como a que o roteiro apresenta. A impressão é a de que Panahi está tentando forçar uma mensagem particular em uma narrativa que não a comporta naturalmente, traindo inclusive as figuras que retrata. Este, diga-se de passagem, é um equívoco que se repete no desfecho do longa, que (também sem spoilers), embora esteticamente elegante pela rima visual criada pela reutilização da luz vermelha vista no início da projeção, mais uma vez depende de nossa capacidade de aceitar que certos personagens fariam/diriam coisas que traem completamente o que vinham fazendo/dizendo até então.
Ainda assim, a força de A Simple Accident se mantém graças à história do próprio Panahi, não sendo difícil imaginar como várias das discussões presentes na obra refletem debates que ele provavelmente testemunhou ou dos quais participou tanto durante seu período na prisão quanto em conversas com antigos companheiros de ativismo quando se encontrava em liberdade. E neste caso o contexto extrafilme faz toda a diferença.
23) Quando lidamos com cineastas que têm um estilo tão marcadamente autoral como Wes Anderson – realizadores que imprimem sua assinatura em cada centímetro do frame, seja na direção de arte, na fotografia ou mesmo na performance dos atores –, torna-se praticamente impossível analisar cada novo trabalho como um projeto isolado; somos inevitavelmente forçados a examinar o filme como mais um episódio dentro de uma vasta carreira, um novo capítulo de uma obra em constante diálogo consigo mesma. Este fenômeno é particularmente evidente no caso de Anderson – e não é por acaso que ao escrever sobre seus longas ao longo dos últimos 23 anos me flagrei repetindo, a cada lançamento, que se tratava do mais wesandersoniano de seus filmes – e O Esquema Fenício não foge à regra.
Mas o que exatamente significa esta afirmação? Há um momento em que, diante de um estilo tão consistente e reconhecível, se torna redundante analisar determinados aspectos técnicos que permanecem praticamente inalterados de um filme para outro: qual seria a relevância, por exemplo, em apontar pela enésima vez como a direção de arte privilegia tons pastéis, como a mise-en-scène investe em uma simetria absoluta ou como os movimentos de câmera alternam entre panorâmicas que saltam rapidamente de um personagem a outro e travellings que se deslocam paralelamente ao eixo da ação até pararem subitamente quando encontram alguma figura importante? Qual o sentido em destacar como os atores são frequentemente posicionados no centro exato do quadro enquanto olham diretamente para a câmera? Afinal, todos os filmes de Anderson compartilham estas características – o que, vale ressaltar, não constitui necessariamente um problema para quem aprecia seu universo estético (o que é meu caso).
Neste contexto, o que passa a diferenciar um filme de outro na filmografia do cineasta são as histórias que ele escolhe contar e os personagens nos quais se concentra – alguns mais interessantes, outros menos: em Asteroid City, seu trabalho anterior apresentado em Cannes, a narrativa contava com um senso de humor tolo e óbvio que, somado a uma artificialidade que soava excessiva (até para os padrões de Anderson), resultava em uma experiência frustrante. Para piorar, o filme era prejudicado por sua indefinição em relação à trama principal e ao protagonista, já que Jason Schwartzman dividia a atenção com diversos outros personagens cujas subtramas assumiam importância suficiente para desviar o foco do arco narrativo central.
(Para ler a crítica na íntegra, clique aqui.)
24) Comparar as estreias na direção de Scarlett Johansson e Kristen Stewart revela muito sobre as escolhas artísticas que ambas as atrizes têm feito nos últimos anos — duas intérpretes talentosas que, cada uma a seu modo, procuraram escapar do rótulo de símbolo sexual quando poderiam ter facilmente construído carreiras protagonizando exclusivamente superproduções baseadas em sua beleza física. Em vez disso, optaram por caminhos que desafiaram as expectativas do público e revelaram ambições artísticas admiráveis, embora a segunda tenha mantido maior consistência em suas buscas.
Pois se é inegável que Stewart tentou fugir de franquias depois de Crepúsculo, esforçando-se para trabalhar com diretores com autoralidade marcante (Olivier Assayas, David Cronenberg, Pablo Larraín, Kelly Reichardt) em projetos arriscados (como Love Lies Bleeding), Johansson jamais se afastou totalmente do comercial, investindo tempo considerável no Universo Cinematográfico Marvel e participando de produções feitas sob medida para o Oscar – às vezes com belos resultados (História de um Casamento), às vezes não (Jojo Rabbit). Aliás, já há um bom tempo que ela não assume riscos como em Match Point, Sob a Pele e Vicky Cristina Barcelona – e Eleanor the Great, ao contrário do corajoso The Chronology of Water, só comprova como seus instintos recentes têm se mantido em territórios seguros e desinteressantes, recorrendo aqui a clichês como atalhos para provocar emoções pré-fabricadas, revelando falta de confiança tanto no material quanto na capacidade do espectador de compreendê-lo.
Estrelado pela excelente June Squibb, atriz que iniciou sua carreira nas telas aos 56 anos de idade e que viu sua trajetória ser impulsionada por seu belo trabalho em Nebraska quando já havia passado dos 80, o filme gira em torno da personagem-título, que, morando há mais de dez anos com a melhor amiga Bessie (Rita Zohar) depois que ambas se tornaram viúvas, mantém um cotidiano confortável em sua previsibilidade e rotina bem estabelecida. Dona de um humor aguçado, Eleanor se contrapõe ao espírito mais melancólico da companheira, que, sobrevivente do Holocausto, exibe os danos psicológicos daquela experiência em seu olhar sempre triste. Porém, quando Bessie morre (não se trata de spoilers; faz parte da premissa do longa), a protagonista é forçada a voltar a morar com a filha e o neto em Nova York, inscrevendo-se em programas comunitários para passar o tempo – e é assim que vai parar acidentalmente em um grupo de apoio formado por indivíduos que conheceram os horrores dos campos de concentração e acaba por narrar a história da amiga como se fosse a sua própria, atraindo o interesse de uma jovem estudante de jornalismo, Nina (Erin Kellyman).
De um ponto de vista temático, o roteiro de Tory Kamen flerta com questões dramáticas potencialmente instigantes, como a culpa experimentada pelos sobreviventes, que não conseguem abandonar um sentimento de remorso diante daqueles que não tiveram a mesma sorte enquanto se questionam se fizeram jus à vida que tiveram a oportunidade de aproveitar. De forma similar, o longa aborda tangencialmente a natureza da memória e sua relação com a mortalidade: em um momento tocante, por exemplo, Bessie comenta que é a única pessoa viva que ainda se lembra do irmão, morto ainda criança pelos nazistas - uma constatação devastadora que implica em como sua própria partida representará também uma segunda morte para o irmão, que deixará de existir mesmo em memória e terá qualquer traço de sua passagem pelo mundo apagado de vez, como se nunca houvesse existido. Infelizmente, estes temas jamais são explorados pelo filme, que parece mais interessado em utilizá-los como ferramentas instantâneas para provocar lágrimas apenas para abandoná-los a seguir. Além disso, em vez de demonstrar como estas questões afetam os personagens emocional e psicologicamente, o roteiro simplesmente os leva a verbalizar seus sentimentos em monólogos, o que, além de preguiçoso, parece sugerir que o espectador só será capaz de compreender nuances emocionais se articuladas explicitamente por aquelas pessoas.
Esta desconfiança sobre a capacidade cognitiva do público se manifesta também na obviedade com que a obra constrói suas situações dramáticas, sempre telegrafando seus desenvolvimentos futuros: depois que Nina começa a entrevistar Eleanor, por exemplo, vemos uma cena na qual seu professor discute o problema representado pelas fake news e a importância da apuração no jornalismo - uma manobra do roteiro para sinalizar que problemas éticos inevitavelmente surgirão, como se fosse necessário um ouvirmos explicações sobre princípios básicos da profissão para compreendermos os riscos envolvidos na situação.
A mesma falta de ambição narrativa é ilustrada pelas conversas que se apresentam como clímax dramática, sejam estas entre Eleanor e filha (Jessica Hecht), explorando décadas de ressentimentos e incompreensões mútuas, ou entre Nina e o pai (Chiwetel Ejiofor), um jornalista bem-sucedido que se isolou emocionalmente depois da morte da esposa. Além disso, em nenhum momento há qualquer dúvida de que a relação com Eleanor servirá como catalisadora para que pai e filha finalmente consigam se comunicar sobre a dor que dividem – e ainda assim a situação se desenvolve com uma artificialidade maior do que poderíamos esperar.
Mesmo os elementos cômicos do filme, que deveriam proporcionar leveza à narrativa, se mostram óbvios e unidimensionais, baseando-se em uma compreensão superficial do humor na terceira idade. Neste sentido, o roteiro parece operar sob a premissa de que qualquer coisa dita ou feita por uma pessoa de 94 anos será engraçada apenas por contradizer estereótipos sociais; assim, Eleanor deve constantemente recitar comentários irreverentes, fazer gestos obscenos e usar linguagem vulgar, já que aparentemente é hilário quando idosos agem como adultos normais. Em certo instante, ao tentar abordar a sexualidade na terceira idade, o longa beira o ofensivo com sua maneira superficial e apressada, que se reduz a um comentário em off feito por Eleanor e que se resume a um “Você acha que nós, velhos, não pensamos mais em sexo? É claro que pensamos”. E assim o assunto se encerra, como se o roteiro estivesse apenas marcando itens em uma lista de tópicos obrigatórios, sem qualquer interesse genuíno em explorá-los. Esta abordagem, claro, converte a protagonista em uma caricatura em vez de desenvolvê-la como uma figura com desejos, medos e contradições autênticas.
Igualmente convencional e desprovido de personalidade em suas estratégias visuais, Eleanor the Great faz o mínimo ao estabelecer o azul como cor associada à protagonista e que eventualmente será adotada também pela jovem jornalista para simbolizar a crescente conexão emocional entre as duas, mas este é seu limite criativo. Já a trilha sonora de Dustin O´Halloran, como é fácil imaginar, sinaliza constantemente como o espectador deve se sentir em cada cena: quando alguém diz algo supostamente engraçado, notas alegres sublinham a piada; quando uma revelação dramática ocorre, cordas melancólicas gritam a deixa para as lágrimas.
Mas se Eleanor the Great já se mostrava frágil em seus 70 minutos iniciais, o nível despenca de vez no ato final da narrativa, culminando (sem spoilers) em uma situação na qual o personagem de Ejiofor, apresentado ao longo de toda a projeção como um profissional sério e brilhante, faz algo que jamais poderia ser considerado como jornalismo – mas que o filme inexplicavelmente trata como um ato de imensa legitimidade jornalística.
Caso houvesse sido dirigido por qualquer outra pessoa além de Scarlett Johansson, Eleanor the Great jamais teria sido selecionado para a mostra Un Certain Regard no festival de Cannes.
20 de Maio de 2025