por Alessandra Alves
Um filme, uma peça publicitária, um instrumento de engajamento, uma coalizão de interesses: Fórmula 1 – O filme cumpre tantos papéis que, antes de analisar o longa em si, é preciso explicar o contexto em que ele foi criado, especialmente para o público com pouca intimidade com o esporte.
Ao contexto, então.
Nestes tempos em que praticamente todos os temas rendem discussões ideológicas, um filme raramente será apenas um produto cultural. Quanto mais uma produção de altíssimo orçamento como esta, que consumiu em torno de 250 milhões de dólares e tem, entre seus produtores, marcas como Apple e a própria categoria, a mais tradicional, globalizada e economicamente relevante do esporte a motor.
Não menos importante, está entre os produtores do filme o piloto britânico Lewis Hamilton, sete vezes campeão de Fórmula 1, atualmente integrante da equipe Ferrari. Estreando na categoria em 2007, Hamilton tornou-se uma das figuras mais célebres do esporte. Com o passar dos anos, foi estendendo sua presença para além das pistas. Frequenta eventos povoados por celebridades tão cintilantes quanto ele, como o badalado Met Gala, em Nova York, e nesse período também foi explicitando cada vez mais suas posições sociais e seus valores.
Entusiasta da filosofia vegana, Hamilton tem usado a própria Fórmula 1 como plataforma para divulgar esta e outras posições, como na época dos protestos pela morte de George Floyd, nos Estados Unidos, em que passou a se ajoelhar nas cerimônias de execução dos hinos, antes das corridas. Também usou camisetas de protesto referentes a outros atos de violência desferidos contra a população negra, inseriu as cores do arco-íris em seu capacete, em apoio à causa LGBT, e influenciou a criação de programas de diversidade em sua antiga escuderia, a Mercedes.
Fez tudo isso em um ambiente cujo público habitualmente sempre teve predomínio de homens brancos europeus. Quase ao mesmo tempo em que Hamilton investia no reforço dessa imagem, por assim dizer, progressista, a própria Fórmula 1 enveredava por um caminho que também buscava a diversidade. Menos por uma questão ideológica, mais por sobrevivência.
Nascida nos anos 1950 e consolidada comercialmente nas décadas de 1980 e 1990, a Fórmula 1 viu esse público tradicionalmente masculino tornar-se também um aglomerado de senhores. A decadência projetada fez com que os dirigentes buscassem não apenas aumentar, mas diversificar a plateia. Nessa nova jornada, tornou-se um esporte com alto engajamento nas redes sociais e investiu em um primeiro produto no campo do audiovisual que representou uma guinada na popularidade da categoria.
A série Drive to Survive, produção Netflix, foi lançada em 2019 com forte apelo no chamado storytelling. Em vez de simplesmente retratar as corridas, seus resultados e estatísticas, a série focava nos bastidores, apostando nas histórias humanas por trás das disputas, entrando na intimidade dos pilotos e de alguns chefes de equipes, mostrando suas famílias e outras relações pessoais. Nos Estados Unidos, onde a Fórmula 1 é transmitida pela ESPN, a audiência média das corridas aumentou em 70% após a estreia de Drive to Survive. Não apenas fez crescer o público, como ampliou a faixa etária interessada na categoria. Estima-se que os espectadores entre 16 e 35 anos cresceram 77% nesse período. E ainda há a questão de gênero. Segundo pesquisa do instituto Nielsen Sports, hoje as mulheres correspondem a 41% do público da F1. Uma comparação: no GP de São Paulo, a presença feminina no público total saltou de 17% em 2019 para 37% em 2023.
Mas também é preciso considerar que todo esse movimento de diversificação da Fórmula 1 aconteceu ao mesmo tempo em que as discussões sobre qualquer assunto se tornaram muito mais ideologizadas no planeta. A postura progressista e inclusiva de Hamilton encorajou um discurso de cunho conservador por parte da audiência. Para uma parcela da plateia do automobilismo, a narrativa de Hamilton é lida como discurso identitário ou mera distração a partir do tema “principal” – corrida de carro.
Quando as notícias sobre Fórmula 1 – O filme começaram a pipocar no mundo do automobilismo, parecia já haver fãs e haters do longa antes mesmo de seu lançamento, apenas pela vinculação do nome Hamilton ao filme. Some-se a isso uma situação paralela que se criou a partir de 2021. Naquela temporada, Hamilton disputou o título até a última corrida com o holandês Max Verstappen, que se sagrou campeão depois de uma decisão no mínimo polêmica durante o GP de Abu Dhabi. Verstappen é hoje tetracampeão do mundo (além de 2021, também venceu os títulos de 2022 a 2024) e reconhecidamente um dos melhores pilotos da história da categoria. Essencialmente focado em pilotar, não demonstra interesse em qualquer projeção de caráter social, nenhum ativismo.
Se estamos falando da famigerada “polarização”, é preciso identificar uma situação evidente nesse ambiente. Ainda que Hamilton e Verstappen sejam reconhecidos como dois dos grandes pilotos da história da Fórmula 1 dentro da própria categoria, incluindo a mídia especializada, as redes sociais e a arquibancada dividem-se de forma quase idêntica. De um lado, progressistas apoiando Hamilton. Do outro, conservadores entusiastas por Verstappen.
Foi nesse contexto claramente dicotomizado que Fórmula 1 – O filme fez sua largada, tendo o objetivo de faturar alto nas bilheterias, mas também de continuar sendo um instrumento de promoção do esporte, na estratégia de ampliar e diversificar continuamente seu público.
Bem, agradecimentos sinceros se você chegou até aqui. Ao filme, então!
Para se tornar um blockbuster, não deixaram barato, convocando para o papel principal o astro Brad Pitt, 61 anos de idade. Ainda antes do lançamento, o nome de Pitt caiu indigesto entre os fãs de F1. De fato, a ideia de que um piloto veterano, na faixa dos 60 anos, possa pilotar um carro de Fórmula 1 é tão absurda que poderia aniquilar um filme concebido a partir dessa premissa. Fórmula 1 – O filme contorna esse risco com uma tática eficiente, com seu roteiro assumindo essa ideia como esdrúxula desde o início, associando a ela termos como “bizarro” e “milagre”, deixando claro ao espectador que não quer enganá-lo, fazendo supor que essa situação acontece de forma corriqueira.
Verossimilhança não é requisito para um filme ser bom, mas quando se trata de cativar uma audiência global, que vai consumir esse produto procurando conexões com o esporte em si, é importante estabelecer esse pacto de forma precoce. Contribui para a assimilação desse contexto a caracterização do personagem de Pitt, Sonny Hayes, que surge como um sujeito na fronteira entre a simpatia e a rabugice, mas inegavelmente devotado ao ato de pilotar. Ali está um autêntico “racer”, o tipo de personagem que se conecta com os fãs de automobilismo. Mas Sonny também encarna uma mistura de liberdade, dedicação, experiência, autenticidade e alguma fragilidade que facilmente desperta simpatia no público geral.
Que ninguém se engane: este é um filme de ação, que tem o automobilismo como centro da história. A maioria absoluta das cenas se passa em autódromos, durante corridas. Se o pai de todos os filmes do gênero – Grand Prix, de 1966, de John Frankenheimer – assombrou o mundo do cinema pelo realismo de suas cenas, realizadas sem os efeitos especiais disponíveis nos anos seguinte, Fórmula 1 beneficia-se largamente desses recursos. Dirigido por Joseph Kosinski (Top Gun: Maverick), Fórmula 1 entrega sequências cheias de ritmo e energia, evocando emoção praticamente todo o tempo, sendo beneficiado nesse aspecto pela trilha sonora do alemão Hans Zimmer, duas vezes ganhador do Oscar (O Rei Leão e Duna).
A grandiosidade do filme está nas cenas de ação. Sua história é muito simples: o piloto veterano Sonny Hayes é convocado para voltar à Fórmula 1 por um velho amigo (Javier Barden), à beira da falência em função dos péssimos resultados de sua equipe. Sonny precisa lidar com as mazelas de um carro ruim, com o temperamento imaturo de seu companheiro de equipe, Joshua Pierce (Damson Idris), e com os fantasmas de sua primeira passagem pela categoria. Embora mergulhe no realismo nas cenas de ação, o filme não pretende contar a história daquele campeonato – foi rodado em 2023 e inclui os pilotos reais em suas cenas de corrida – não se importa com a evolução das outras equipes nem com os dramas dos demais pilotos. Sequer informa quem foi o campeão da temporada. Ao se fixar no microcosmo daquela equipe em apuros, Fórmula 1 ganha liberdade e agilidade para construir a trajetória dos personagens centrais e, mesmo que seja previsível, consegue criar tensão e expectativa, atributos essenciais de um filme de ação.
O filme se vale da tradicional receita que utiliza como ingredientes o velho mestre desiludido e um tanto cínico com o jovem talento impetuoso e ligeiramente arrogante. Funciona não apenas pelo ritmo eficiente da narrativa, mas porque também cria familiaridade com o público que se acostumou a ver trajetórias parecidas com essa na própria Fórmula 1. O já citado Lewis Hamilton que o diga. Sem avançar em detalhes da trama, é possível enxergar parte da história do heptacampeão no jovem Pearce, e esta não é a única referência a fatos reais nas 2h35 do longa.
Situações como os acidentes sofridos pelos pilotos Martin Donnelly (de importância vital para a história de Hayes e cujos detalhes entregariam spoilers) e Romain Grosjean, que escapou ferido de um acidente pavoroso em 2020, ajudam na criação de empatia junto ao público, sem pesar na história. Os embates entre Hayes e Pierce também servem para o filme explicitar as mudanças que a categoria (a sociedade?) sofreu nas últimas décadas. O “analógico” Hayes calça seus tênis, corre nas pistas e treina reflexos com bolinhas de tênis. Parido na era digital, Pearce treina na esteira, vive com o rosto fixado em telas e mede seus gestos pela perspectiva de engajamentos que seu onipresente empresário projeta a cada nova postagem nas redes sociais. É claro que os dois homens tão diferentes do início encontrarão suas semelhanças, e também nesse ponto Fórmula 1 mostra-se hábil em amarrar pontas e mediar conflitos. E esses conflitos eram tantos e tão drásticos que a criação de um vilão de carne e osso mostra-se como o elo mais fraco de um roteiro em geral muito lógico e eficiente.
A história simples rende um filme com mais de duas horas e meia por fazer aquilo que parece ser o maior atributo do filme: mergulhar a audiência no ambiente da Fórmula 1, inserindo uma enormidade de elementos reais (procedimento de largada, pit stops, conversas via rádio, simuladores, gráficos digitais, reuniões de equipe, camarotes vip), oferecendo uma experiência de “insider” para um público que, até bem pouco tempo atrás, só tinha a visão da arquibancada ou a transmissão contida da TV. E faz isso em altíssima velocidade, seja na imagem do drone que contempla o autódromo do céu e aterrissa dentro do box, seja nas disputas acirradas na pista.
Essa imersão chega ao seu ápice em uma tomada on board, no final, que merece entrar para a história dos filmes de automobilismo como a melhor tradução já vista nas telas da velocidade que um carro de Fórmula 1 alcança. A jornada do herói, os conflitos, as conciliações, o romance, a sátira a certas figuras (jornalista, empresário, fã) ajudam a emoldurar um filme que se pretende pura ação e alcança esse objetivo com louvor.
As qualidades de Fórmula 1 – O filme são tão abundantes que o produto final parece ter se tornado uma quase unanimidade dentro da conflagrada audiência atual da categoria. No site de avaliações Rotten Tomatoes, já na semana de estreia, alcançou 97% de avaliações positivas entre os usuários (o chamado Popcornmeter, que considera apenas as opiniões do público, sem computar a crítica especializada). Fórmula 1 – O filme foi abraçado pelo público, seja por sua grandiosidade, pela eficiência de suas cenas de ação, pelas emoções que sua trilha sonora provoca.
Ou até por uma fala curta e rápida que o protagonista profere, emitindo um respeitoso juízo de valor... sobre Max Verstappen.