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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
28/08/2009 01/01/1970 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Duração do filme
109 minuto(s)

Direção

Lars von Trier

Elenco

Charlotte Gainsbourg , Willem Dafoe

Roteiro

Lars von Trier

Produção

Lars Jönsson

Fotografia

Anthony Dod Mantle

Música

Kristian Eidnes Andersen

Montagem

Anders Refn

Design de Produção

Karl Júlíusson

Figurino

Frauke Firl

Direção de Arte

Tim Pannen

Anticristo
Antichrist

Dirigido por Lars von Trier. Com: Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg.

Anticristo é o sonho molhado de qualquer psicanalista. Filme carregado de símbolos que vão de imagens religiosas a construções freudianas, este novo trabalho de Lars von Trier só decepcionará aqueles que o interpretarem literalmente, já que, neste caso, se transformará numa obra mergulhada em sadismo gratuito e destruída por um roteiro sem pé nem cabeça. Por outro lado, assim como os conceitos de id, superego e ego estabelecidos pelo mestre austríaco remetem diretamente à maneira com que os gregos antigos dividiam a “alma” (respectivamente: desejo, razão e espírito), Anticristo oscila com fluidez entre a Fé e a Razão, criando uma narrativa complexa, madura e profundamente angustiante.

Escrito pelo próprio diretor, o roteiro conta uma história simples e que não interessa de fato, já que o mais importante para a narrativa é a forma com que enxergamos os dois personagens principais e seus dilemas pessoais – e cada espectador certamente projetará, no casal vivido por Dafoe e Gainsbourg, suas próprias preocupações e interpretações. Assim, depois de um começo plasticamente fascinante no qual acompanhamos, em preto-e-branco e câmera lenta, uma transa dos protagonistas enquanto o filho pequeno destes sofre um acidente fatal, somos levados a uma jornada psicológica extenuante enquanto o Homem, psicanalista experiente, tenta ajudar a Mulher a superar o opressivo estado de luto no qual mergulhou. Viajando para uma cabana localizada no meio de uma densa floresta, os dois discutem seus maiores medos até que eventualmente passam a descontar fisicamente um no outro todas as suas raivas e frustrações.

Sem jamais fornecer os nomes dos personagens e insistindo em embaçar os rostos de todos os demais atores vistos ao longo da narrativa, von Trier transforma o Homem e a Mulher em representantes de toda a raça humana ao mesmo tempo em que nos força a ignorar o restante da humanidade, numa aparente contradição que, na realidade, esconde um certo didatismo por parte do diretor, que, com isso, evita maiores confusões para o espectador ao limitar nosso foco ao que ocorre com os protagonistas. Enquanto isso, a belíssima fotografia de Anthony Dod Mantle, colaborador habitual do cineasta, cria imagens que permanecerão com o público por muito tempo depois do fim da sessão, como a floresta que, semi-mergulhada na névoa, traz simultaneamente pontos de luz intensa e escuridão profunda enquanto a câmera lentíssima estabelece uma atmosfera de pesadelo aterrorizante – e, neste sentido, a direção de arte contribui ao criar cenários opressivos e tristes, desde a cabana de madeira no meio do nada ao banheiro deprimente que, com seus azulejos encardidos e porcelana azul, parece parte de um presídio. Além disso, os cortes secos e os constantes saltos no eixo conferem à narrativa uma falta de continuidade no tempo e no espaço que contribuem para o já mencionado (e importantíssimo) tom de pesadelo que Lars von Trier julga tão importante.

Aliás, para um filme que afirma, em certo instante, que “Freud está morto” (numa clara ironia), Anticristo certamente não hesita em criar toda uma lógica estrutural inspirada na psicanálise: atordoados pela morte do filho, o Homem e a Mulher encontram formas diferentes, mas igualmente ineficazes, de lidar com luto – e se a personagem de Gainsbourg mergulha numa dor física e em outros sinais que parecem remeter a uma curiosa síndrome de abstinência (falta do filho? De ser Mãe?), o pai vivido por Dafoe parece usar o sofrimento da esposa para tentar ignorar o seu próprio, dedicando-se a “tratá-la” mesmo que, para isso, obrigue-a a entregar-se de vez aos seus medos mais intensos. Além disso, embora ambos se sintam culpados pela negligência que levou ao acidente, é a Mulher quem mais sente o peso desta responsabilidade, já que, como Mãe, acredita ter falhado em relação à sua própria natureza feminina.

Mas é a partir da decisão do casal de viajar para a cabana que os conflitos realmente ganham dimensão: batizado de Éden (uma referência nada sutil ao Pecado Original), o local funciona como uma espécie de redoma que permite que eles se concentrem na própria dor, investigando o que havia de podre por baixo da superfície de felicidade conjugal na qual pareciam viver anteriormente – algo simbolizado por um plano revelador no qual von Trier se aproxima de um vaso de flores até expor a sujeira das sedimentações na água e no caule das plantas. Da mesma forma, durante um dos primeiros exercícios psicológicos promovidos pelo Homem na cabana, a Mulher acaba vendo, chocada, uma ave que devora o filhote depois que este despencou da árvore, num reflexo literal e simbólico da morte de seu próprio filho e de sua falha como mãe e protetora. Assim, Anticristo logo estabelece a ligação entre a floresta e os impulsos e receios primais do ser humano, numa comparação lógica entre a natureza humana e a Natureza em si.

Mas a utilização de fenômenos da Natureza como analogia do processo mental dos personagens não para por aí: incomodados pelo barulho provocado pela queda constante de sementes de carvalho sobre o teto da cabana, eles não demoram a estabelecer uma relação entre aquilo e a perda de uma vida tão jovem – já que, assim como as sementes repletas de potencial de vida que se perdem e morrem em solo infértil, o próprio filho do casal teve sua existência brutalmente cortada logo no início (e há uma rima temática chocante, mas fabulosa, entre a queda das sementes e o pavoroso plano em que o Homem ejacula sangue, derramando morte no lugar do sêmen). E se o sexo passa a ser visto pela Mulher como forma de fuga, isto inevitavelmente se deve também ao potencial criador do ato, numa busca provavelmente inconsciente de: a) voltar a sentir algo diferente da dor; e b) criar um substituto para o filho que se foi.

A personagem de Charlotte Gainsbourg, aliás, é um poço de contradições – mas isto, em vez de torná-la inverossímil ou artificial, acaba convertendo-a em uma criatura fascinante por sua complexidade. Cada vez mais frustrada e furiosa com a insistência do marido em analisá-la e decifrá-la, a Mulher ainda é torturada por seu avassalador sentimento de culpa, já que sente ter falhado não só como mãe, mas como representante do sexo feminino – o que eventualmente a leva ao ato radical da auto-castração. Toda a narrativa, vale dizer, é desenvolvida a partir do ponto de vista desta personagem – e, assim, é apenas natural que, ao mostrar a imagem da floresta passando rapidamente pela janela do trem, von Trier inclua flashes quase imperceptíveis, subliminares, que revelam rostos distorcidos de mulheres (provavelmente Gainsbourg sob maquiagem) e de corpos nus durante o sexo.

A lógica por trás dos simbolismos e metáforas do cineasta, aliás, é impecável: depois de mais uma vez ser frustrado diante da resistência da esposa, por exemplo, o Homem sobe ao sótão da cabana para investigar algo – e o que temos ali é a perfeita representação de sua decisão de mergulhar na própria psique num processo doloroso de auto-análise. E o que ele encontra é um ambiente grande e escuro repleto de segredos e imagens simbólicas de repressão – algo que, mais uma vez, estabelece uma elegante conexão com o plano no qual o sujeito percebe, à distância, algo se movendo sob a folhagem como num eco distante de seus medos inconscientes reprimidos e que ocasionalmente buscam chamar sua atenção. Mas a inteligência de Lars von Trier só se revela completamente quando o Homem investiga o tal movimento e se depara com uma raposa se devorando.

Ora, momentos antes ele vira um cervo correr pela floresta com um filhote morto pendurado em seu corpo – exatamente como o próprio Homem é visto pelo mundo como um indivíduo que carrega a dor da perda do filho. Em outras palavras: o cervo seria a representação da imagem externa do protagonista, incorporando seu ego, ao passo que a raposa autofágica seria, claro, a instância auto-repressora de sua psique – o superego, portanto. O que faltaria neste quadro, então? O id, claro: os impulsos primais de um indivíduo que, ao contrário da esposa, se deixou dominar completamente pela razão, pela raposa esfomeada da auto-censura. Mas como o Homem poderia restabelecer sua conexão com seu instinto? De acordo com von Trier, apenas através do instinto de sobrevivência e ao reconhecer que, sem se libertar das amarras impostas pelo moralismo e pela sociedade, estamos basicamente mortos. Assim, depois que a Mulher impede seu livre deslocamento ao atravessar um imenso peso em sua perna, o Homem descobre não ter as ferramentas (físicas e psicológicas) necessárias para se libertar e, sem alternativa, decide se esconder – e, para isso, encontra exatamente o lugar que a esposa havia apontando anteriormente como evidência de sua “cura”: uma pequena toca sob uma imensa raiz.

O retorno ao útero, portanto (não é à toa que a Mulher exibira a toca ao falar de sua recuperação, de sua volta ao estado natural). Assim, no escuro e de volta aos primórdios de seu desenvolvimento, o Homem finalmente encontra, enterrado ao seu lado, um corvo – que imediatamente tenta alçar vôo e grasnar, resistindo aos insistentes golpes que buscam destruí-lo de vez. Vitoriosa, a ave escapa, completando a metáfora de von Trier ao representar o Id, o impulso básico que, depois de reprimido pela raposa (que, afinal, é um animal que devora corvos), finalmente encontra espaço para se manifestar. O resultado é o renascimento do personagem de Dafoe, que, segundos depois, é retirado da terra como um bebê que abandona o corpo da mãe durante o parto – e agora, já possuindo as ferramentas psicológicas de que necessitava, ele por fim consegue retirar o peso que o imobilizava e volta a caminhar livremente, deixando aquele lugar infernal.

É claro que, como indivíduo talvez excessivamente racional, eu tenha buscado uma interpretação igualmente lógica para a fértil narrativa de von Trier – e é possível que uma pessoa de caráter mais religioso fosse levada a ver, por exemplo, o cervo, a raposa e o corvo como representações da Divina Trindade ou algo nesse sentido. E confesso que eu teria curiosidade em ler uma análise nesse sentido, já que o que importa realmente não é se estou certo ou errado em minhas interpretações, mas sim que o cineasta dinamarquês ofereceu, através de sua obra, uma vasta matéria-prima não só para visões diferentes sobre o filme, mas também para que seus espectadores pudessem fazer uma reveladora auto-análise.

E é por esta razão que encarar Anticristo de maneira literal, como um longa dedicado ao gore e ao sadismo gratuito, é mais do que simples falta de imaginação; é uma oportunidade terrivelmente desperdiçada.

09 de Dezembro de 2009

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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