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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
19/02/2010 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
106 minuto(s)

Um Homem Sério
A Serious Man

Dirigido por Ethan e Joel Coen. Com: Michael Stuhlbarg, Richard Kind, Fred Melamed, Aaron Wolff, Sari Lennick, Jessica McManus, David Kang, George Wyner, Michael Tezla, Simon Helberg, Adam Arkin, Allen Lewis Rickman, Yelena Shmulenson, Fyvush Finkel.

Sempre que um novo trabalho dos irmãos Ethan e Joel Coen chega às telas, sinto uma necessidade quase incontrolável de repassar a lista de seus filmes anteriores – e invariavelmente me impressiono com a diversidade e a qualidade que atravessa a maior parte de sua obra. Igualmente interessante é reparar como, embora tenham alcançado uma independência e um prestígio únicos ao longo de seus 26 anos de carreira, os Coen jamais parecem se dedicar a um projeto que não seja obviamente pessoal (Matadores de Velhinhas à parte), imprimindo seu senso de humor atípico e sua visão de mundo particular mesmo em longas com caráter mais “comercial” como O Amor Custa Caro e Queime Depois de Ler. Assim, não é de se espantar que depois do sucesso alcançado com Onde os Fracos Não Têm Vez, eles criem um filme tão ímpar quanto este Um Homem Sério, que, mais do que um verdadeiro tratado sobre a ansiedade e a frustração, é um retrato fabuloso de um sujeito que, criado para ter a Fé como norte, finalmente passa a questionar os desígnios divinos ao atingir a meia-idade. Hein? Isso soou como um drama existencialista? Pois para os Coen isto é comédia pura.

Depois de um breve prelúdio que, rodado na claustrofóbica razão de aspecto 1.33:1, utiliza uma parábola de cunho judaico para apresentar o tema principal do filme (a incerteza acerca do sobrenatural e da Fé), o roteiro nos apresenta ao ansioso Lawrence Gopnik (Stuhlbarg), um professor de física que, prestes a conseguir uma sonhada estabilidade na faculdade em que leciona, vê seu mundo desabar em função de uma série de pequenos e grandes desastres: sua esposa pretende se divorciar para se casar com outro homem; seus superiores vêm recebendo cartas anônimas ao seu respeito e que podem ameaçar seu emprego; um aluno ameaça denunciá-lo por extorsão; seu irmão mais velho parece decidido a morar para sempre na sala de sua casa; seu vizinho insiste em roubar parte de seu terreno; e um certo “clube do disco” passa a cobrar várias e caras mensalidades por um serviço que ele não assinou. Assim, mesmo enquanto ensina o paradoxo de Schrödinger (sobre o gato que, de acordo com a mecânica quântica, encontra-se simultaneamente vivo e morto até que um observador possa constatar seu estado real), Lawrence mergulha em questões puramente metafísicas, como a natureza de Deus (ou HaShem) e os obstáculos que este coloca no caminho daqueles que quer testar – e, neste caso, Lawrence se mostra um autêntico Jó.

Mestres em estabelecer o universo de seus personagens através dos diálogos, os Coen aqui usam a cultura hebraica com o mesmo talento com que empregaram as construções de frases atípicas vistas em Fargo e Arizona Nunca Mais – e, assim, quando ouvimos Judith explicar para o marido que “sem o gett, serei uma aguna”, podemos até não conhecer o significado exato das palavras, mas compreendemos exatamente o que querem dizer e – mais importante – o que representam para a personagem. Da mesma forma, a insistência de Lawrence em protestar por “não ter feito nada” para merecer tantos problemas é algo que aponta não só para seu sentimento de que tudo ocorre como conseqüência de algo (uma filosofia que ele manifesta abertamente para seu aluno Calvin) como também para sua absoluta passividade diante da vida – algo que o leva ao absurdo de se oferecer para chamar a esposa quando o amante desta o visita e que permite que Judith chegue ao ponto de condená-lo por se irritar ao descobrir a traição.

Buscando encontrar sentido mesmo para suas dúvidas existenciais/filosóficas/religiosas (em certo instante, ele sonha com uma imensa equação que explicaria a incerteza do universo), Lawrence ambiciona principalmente ser considerado um “homem sério” por seus pares, o que torna seu “rival” Sy Ableman (reparem o sobrenome!) ainda mais irritante em função de sua postura de superioridade, sua enunciação impecável e cuidadosa e, claro, seu status diante da comunidade (e vale apontar que, como Sy, Fred Melamed, antiga figurinha carimbada nos filmes de Woody Allen, faz um trabalho magnífico).

Cada vez mais seguros do ponto de vista técnico (e reparem que Gosto de Sangue, primeiro filme da dupla, já era um belíssimo exercício de gênero), os Coen comandam Um Homem Sério com uma precisão invejável: cada plano, cada close, cada inclinação de quadro traz um propósito claro – e em vários momentos a expressão “rigor visual” me cruzou a mente, embora talvez isto sugira um engessamento estético que os irmãos obviamente não exibem. Ainda assim, é impossível não notar, por exemplo, o cuidado no trabalho com os figurinos (como na cena no restaurante, em que Judith e Sy usam roupas quadriculadas que ressaltam sua cumplicidade e excluem o triste Lawrence e seu terno sem vida) ou a utilização magnífica das músicas incidentais (entre as quais se destaca, claro, “Somebody to Love”, do Jefferson Airplane). Além disso, o soberbo design de som repete o apuro de Onde os Fracos Não Têm Vez, ajudando a enriquecer aquele universo através de detalhes como o tilintar do gelo num copo, o mergulho ritmado de um saquinho de chá numa xícara ou o ruído crescente do fogo na lareira para ressaltar a tensão, durante a cena de abertura. Como se não bastasse, a escolha do elenco continua a ilustrar a sensibilidade particular dos cineastas, já que cada rosto parece ter sido construído especialmente para o filme.

Simultaneamente divertido, melancólico e angustiante, Um Homem Sério é um filme de adultos para adultos: se por um lado Lawrence é aconselhado a “aceitar o mistério”, por outro não pode deixar de acreditar na existência de uma regra universal que explique suas atribulações. Sim, é verdade que seu telefone toca para transmitir uma notícia potencialmente negativa assim que ele toma uma decisão dúbia (castigo divino imediato?), mas também é importante apontar que as coisas parecem encontrar um equilíbrio naturalmente. Pois o fato é que, de uma maneira ou de outra, ele jamais poderá ter certeza sobre a (não)existência ou a natureza de Deus, acerca de seu próprio destino ou mesmo daquilo que acontecerá no segundo seguinte, ainda que se esforce ao máximo para ser o  “homem sério” que considera como um modelo a ser seguido.

Embora não perceba, Lawrence é, ele próprio, o gato de Schrödinger.

19 de Fevereiro de 2010

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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