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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
28/02/2003 14/02/2003 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Duração do filme
114 minuto(s)

As Horas
The Hours

Dirigido por Stephen Daldry. Com: Meryl Streep, Nicole Kidman, Julianne Moore, John C. Reilly, Ed Harris, Claire Danes, Stephen Dillane, Miranda Richardson, Toni Collette, Allison Janney e Jeff Daniels.

Nossa percepção de passagem de tempo é algo incrivelmente relativo. Quando estamos felizes, o tempo `voa`, deixando-nos com a sensação de que dias se converteram em poucos minutos. Porém, quando sofremos, os ponteiros do relógio se arrastam pesadamente, como se quisessem prolongar nossa dor. Nestes momentos, as horas se transformam em uma eterna tortura, um martírio sem fim.


Inspirado no premiado livro de Michael Cunningham, As Horas funciona justamente como um sofrido retrato destas horríveis ocasiões em que a angústia domina nossas vidas, levando-nos a pensar que a tão esperada sensação de bem-estar jamais será experimentada. Para isso, o roteiro desta produção (adaptado com grande sensibilidade por David Hare) conta a história de três mulheres que, apesar de viverem em épocas diferentes, possuem duas características em comum: a dor e uma curiosa ligação com o romance Sra. Dalloway. Vivendo em 1923, a escritora Virginia Woolf está justamente dando início ao livro (que viria a lançar em 1925), enquanto tenta se acostumar com a monotonia da pequena cidade na qual é obrigada a morar depois de enfrentar graves problemas psicológicos durante o período em que residiu em Londres. Já em 1951, a dona-de-casa Laura Brown lê a obra de Woolf enquanto tenta lidar com seu próprio sofrimento, já que se sente infeliz em viver com o marido e o filho de 5 anos de idade. Finalmente, em 2001, a sofisticada Clarissa Vaughan se transforma em uma versão moderna da Sra. Dalloway ao preparar uma festa para um grande amigo que, vítima da AIDS, está sendo homenageado por suas poesias.

Sem sentir necessidade de explicar para o espectador os motivos precisos por trás do sofrimento das três mulheres, As Horas se concentra na forma com que estas tentam lidar com a dor, já que (excetuando-se, talvez, Virginia Woolf) também não compreendem exatamente o que as incomoda. Aliás, tomemos a romancista como nosso primeiro exemplo: interpretada com grande intensidade por uma Nicole Kidman irreconhecível, Virginia é uma mulher obcecada pela precisão: `Acho que tenho a primeira frase do livro`, ela diz para o marido, em certo momento. Paradoxalmente, ela se mostra aterrorizada ao ser obrigada a lidar com a criadagem, como se temesse ser julgada e considerada `inadequada`. Vítima de alucinações sonoras, ela se ressente por ter sido obrigada a se `exilar` no subúrbio: `Até mesmo o pior dos pacientes, o mais baixo de todos, tem o direito de opinar sobre seu tratamento. É assim que ele define sua humanidade`, ela argumenta.

Enquanto isso, Clarissa Vaughan, interpretada pela maravilhosa Meryl Streep, é uma mulher sofisticada e culta que, por trás de sua fachada forte e independente, esconde uma vulnerabilidade insuspeita. Aparentemente feliz em seu relacionamento, ela comenta sobre sua parceira: `Estamos juntas há 10 anos. Não é uma loucura?`, indicando, num curioso ato falho, não compreender exatamente os motivos que a levaram a um envolvimento homossexual – talvez a rejeição sofrida por parte do poeta vivido por Ed Harris? O filme não revela – e não precisa fazê-lo.

Por outro lado, a depressão de Laura Brown, personagem da sempre competente Julianne Moore, tem causas mais profundas: em uma época dominada pela obsessão com o american way of life, Laura sente-se condicionada a assumir o papel de esposa e mãe perfeita, mesmo que seus anseios e sonhos sejam frustrados por aquela vida de aparências (e imaginem como deve ser sufocante morar naqueles bairros que, preenchidos por casas idênticas umas às outras, afastam qualquer sinal de individualidade de seus habitantes). Sentindo-se culpada por sua `ingratidão`, Laura tenta compensar sua família através de gestos superficiais de carinho, como no momento em que explica para o filho: `Vamos fazer um bolo para o papai a fim de mostrarmos que o amamos`. `Se não fizermos o bolo, ele não vai saber?`, pergunta o garoto. A resposta (`Não`) choca por dois motivos: 1) é triste verificar que ela pensa desta maneira; e 2) é trágico constatar que ela não percebe o dano psicológico que sua resposta provoca no garoto. (De todo modo, os personagens masculinos de As Horas – interpretados com talento por Ed Harris, Stephen Dillane e John C. Reilly - são apenas periféricos, e o filme jamais se detém em seus processos mentais.)

Montado com uma competência sem igual por Peter Boyle (que, definitivamente, merece o Oscar por seu trabalho), As Horas flui com uma elegância extremada, permitindo que uma cena situada em determinada época tenha continuidade, através de gestos dos personagens ou de movimentos de câmera, em outro período de tempo – em certo instante, por exemplo, uma personagem se inclina para lavar o rosto e, quando percebemos, outra surge em cena com a face umedecida. Além disso, há uma série de repetições temáticas que ligam as três narrativas: os personagens de Miranda Richardson (em 1923) e Jeff Daniels (em 2001), por exemplo, chegam com antecedência a compromissos previamente marcados e acabam presenciando explosões emocionais de suas anfitriãs. Da mesma forma, nas três épocas o espectador acaba testemunhando um beijo entre duas mulheres – a diferença reside apenas na motivação de cada um: um beijo atua como oferta de conforto; outro funciona como pedido de consolo; e o terceiro simboliza um gesto de agradecimento. Aliás, esta diversidade também aparece na relação entre as três mulheres e os homens presentes em suas vidas: o sr. Woolf vive por Virginia; enquanto Clarissa, ao contrário, vive por Richard. Já Laura se entrega ao marido e ao filho não por dedicação a estes, mas sim pelo que eles significam (um modo de vida aprovado pela sociedade).

Embalado por uma bela e melancólica trilha sonora (composta por Philip Glass), As Horas é um filme sensível que compreende a dor da depressão – condição que vivenciei durante mais de dez anos, até finalmente buscar apoio psiquiátrico, há pouco mais de dois anos (em 2001, portanto). Naquele longo período, eu era freqüentemente assaltado por um terrível pavor de morrer ou de perder alguém amado e, nestas ocasiões, sentia uma tristeza profunda sem saber exatamente o porquê. Finalmente, percebi que, caso não procurasse auxílio, acabaria sendo derrotado pelo sofrimento – e só faço esta pequena confissão para explicar os motivos que me levam a compreender com perfeição a melancolia com que Virginia Woolf explica para o marido: `Eu luto sozinha contra a escuridão, na mais profunda escuridão, e só eu sei o que isso significa. Só eu posso entender minha condição. Você vive sob a ameaça de minha extinção. Eu também vivo sob esta ameaça`.

Nos dias de hoje, felizmente, a medicina é capaz de, através de apoio químico ou psicológico, trazer alívio para aqueles que, como eu, enfrentaram (ou ainda enfrentam) a depressão. Mas, mesmo curado, jamais me esquecerei da época em que, como as protagonistas deste filme, fui obrigado a enfrentar `as horas`. E esta é uma batalha que, obviamente, só se torna mais difícil com o passar do tempo.
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13 de Março de 2003

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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