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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
19/03/2004 25/02/2004 3 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
127 minuto(s)

A Paixão de Cristo
The Passion of the Christ

Dirigido por Mel Gibson. Com: James Caviezel, Monica Bellucci, Maia Morgenstern, Rosalinda Celentano, Francesco De Vito, Luca Lionello, Jarreth Merz, Mattia Sbragia, Hristo Naumov Shopov.

Quando escrevi sobre o clássico O Nascimento de uma Nação, há alguns anos, observei que o filme deveria ser avaliado a partir de dois aspectos diferentes: o técnico e o moral. Cinematograficamente falando, o longa de Griffith é admirável, sendo o responsável pela introdução de recursos narrativos fundamentais para o Cinema moderno; já do ponto de vista de conteúdo, é simplesmente desprezível em seu racismo declarado. Pois A Paixão de Cristo, dirigido por Mel Gibson quase 90 anos depois, é outro claro exemplo de projeto que exige uma divisão semelhante em sua análise – embora, desta vez, a questão moral seja infinitamente mais complexa e delicada, já que soma-se a outro elemento explosivo: religião.


Comecemos, portanto, pelo mais fácil: Gibson é indubitavelmente um diretor talentoso, capaz de criar imagens impactantes e de criar um universo verossímil o bastante para `sugar` o espectador para a história. Mantendo a câmera próxima de seus atores, o cineasta permite que compartilhemos de suas dores e sentimentos sem que precise apelar para os diálogos – que, por sinal, são ditos em aramaico, latim e hebraico, conferindo uma enorme verossimilhança à narrativa. Em alguns momentos, é como se tivéssemos sido transportados no tempo e estivéssemos, de fato, presenciando aqueles acontecimentos (sensação que seria arruinada caso ouvíssemos Jesus conversar em inglês, por exemplo). E, embora ocasionalmente se empolgue com o estilo e exagere na utilização de câmeras lentas, Gibson deixa a narrativa fluir sem muitas intervenções, o que é um sinal de sua maturidade como diretor.

Aliás, o mesmo apuro técnico pode ser observado com relação à maravilhosa direção de arte, que recria a antiga Jerusalém com riqueza de detalhes, aos elaborados figurinos, à trilha sonora evocativa de John Debney e, principalmente, à fotografia de Caleb Deschanel, que utiliza as cores de forma sempre significativa. Observem, por exemplo, a seqüência inicial, que se passa no jardim de Getsêmane, onde Jesus encontra-se aflito, ciente de que sua tortura está prestes a começar: mergulhado em um belo tom de azul (referência à natureza divina do personagem), o momento é finalmente `manchado` pelos reflexos vermelho-alaranjados das tochas carregadas por aqueles que vieram prender Cristo – o que representa uma escolha elegante e inteligente por parte de Deschanel.

E chegamos, então, ao objetivo final de tanta técnica: como e para que Mel Gibson empregou tantos indivíduos talentosos? Para narrar as 12 últimas horas da vida de Jesus Cristo, desde sua prisão até sua crucificação e morte – um acontecimento central para o surgimento do cristianismo, obviamente, mas que ignora as passagens mais significativas e belas da história do Messias. Qual é, afinal de contas, a mensagem de A Paixão de Cristo? A de que ele morreu na cruz para livrar-nos de nossos pecados? Ora, qualquer cristão sabe disso, e sem a necessidade de testemunhar o espetáculo de sadismo promovido por Gibson, que faz questão de mostrar cada golpe desferido em Jesus. Porém, onde estão as lições de amor e compaixão deixadas pelo `Filho de Deus`? Será que o mais importante sobre Jesus é sua morte?

Para evitar que o espectador constate estar assistindo a um snuff film, Gibson ainda procura introduzir flashbacks que mostram (de acordo com a bem-humorada definição de minha amiga Dawn Taylor, da OFCS) os `Melhores Momentos de Cristo`, como a Santa Ceia, o quase apedrejamento de Maria Madalena e o sermão da montanha. O problema é que estas cenas são curtíssimas e em nada adiantam no sentido de conferir maior dimensão a Jesus – que só consegue provocar algum tipo de identificação no espectador em sua ansiedade no Getsêmane (que salienta seu lado humano) e graças à excepcional performance de Jim Caviezel, que com seus olhos bondosos e expressão serena supera as limitações impostas pelo roteiro (e sua capacidade de ilustrar a dor física do personagem é impressionante, levando-nos a considerar a possibilidade de que ele realmente estivesse sendo martirizado). Curiosamente, o único momento de A Paixão de Cristo que teve sucesso em despertar algum tipo de emoção em mim (diferente do choque) foi aquele em que Maria, ao tentar consolar o filho, lembra-se de uma ocasião em que ele, ainda criança, se machucara. Ainda assim, creio que minha compaixão dirigiu-se à pobre mãe, e não ao homem que carregava a cruz.

Como se não bastasse, a insistência do diretor em ilustrar o calvário de Jesus de forma extremamente gráfica e violenta acaba alcançando um resultado estranho: depois de uma hora de tortura, quando já vimos Cristo ser espancado, chicoteado e ter partes de sua carne removidas por garras de metal, começamos a ficar anestesiados com relação ao que estamos assistindo, e o impacto diminui, deixando, em seu lugar, um mero festival de sangue. E o que é pior: do ponto de vista narrativo, o longa acaba tornando-se repetitivo, já que Gibson faz questão de incluir cada queda do protagonista ao longo de seu caminho.

Com relação à questão central discutida sobre A Paixão de Cristo, passamos a pisar em um terreno infinitamente mais delicado: afinal, Mel Gibson criou um manifesto anti-semita ou não? Tentemos ignorar, a princípio, o fato de que Gibson já forneceu vários indícios de que possui um certo preconceito com relação ao povo judeu (algo que herdou de seu pai, um canalha que nega a ocorrência do Holocausto) e nos concentremos apenas em seu filme. Quem, de acordo com o longa, foram os principais responsáveis pela morte de Cristo? Esta é uma questão clara para o filme: os altos sacerdotes judeus, especialmente Caifás. Foram eles que compraram a traição de Judas, prenderam Jesus e o levaram até Pôncio Pilatos, insistindo que este o condenasse à morte. Aliás, os sacerdotes chegam a manipular claramente a opinião de seus seguidores, levando-os a exigir a libertação de Barrabás (no lugar de Cristo) e a crucificação do `Filho de Deus`. Isso é inequívoco, não há discussão: é esta a versão que A Paixão de Cristo apresenta.

Agora, isto é o bastante para classificá-lo como anti-semita? A princípio, não: afinal, basta ler os Evangelhos para constatar que a ação dos sacerdotes judeus consta das narrativas de Lucas, Mateus, João e Marcos. O grande problema é que Gibson, co-autor do roteiro, utiliza as partes que mais lhe interessam dentro de cada Evangelho: assim, Marcos (o mais comedido dos quatro) é praticamente deixado de lado e, em seu lugar, as descrições dos outros três ganham relevo – incluindo Mateus, o mais incendiário deles (é dele a infame frase `O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos`, que viria a dar origem à trágica perseguição aos judeus. Aliás, vale dizer que Gibson retirou, sob protestos, a legenda que traz esta frase, mas deixou a fala no filme, o que, no mínimo, revela uma preocupante desonestidade de sua parte.).

Além disso, A Paixão de Cristo retrata Pilatos como um indivíduo que tenta, a todo custo, salvar Cristo – ele é o único personagem da narrativa que manifesta seus conflitos interiores sobre o que fazer com relação ao Messias, e fica bastante claro que ele só condena Jesus em função da forte pressão exercida pelos sacerdotes judeus (ele chega a tentar transferir a responsabilidade para Herodes – que, diga-se de passagem, Gibson retrata como um indivíduo com claros trejeitos homossexuais, o que também é indício de sua mentalidade preconceituosa. Neste caso, um preconceito duplo.). E, embora alguns legionários sejam vistos como bárbaros que sentem grande prazer em torturar Cristo, em vários instantes vemos a reação (em close-up) de vários outros romanos que manifestam desconforto com relação ao que vêem. Mas vamos direto ao ponto: imagine que Gibson houvesse substituído todos os judeus do filme por personagens negros e que, no lugar de Cristo, estivesse (digamos) Martin Luther King. Você hesitaria em considerar o projeto racista? Duvido muito.

Ainda assim, é possível assistir a A Paixão de Cristo sem se deixar contaminar por seu subtexto anti-semita? Sim, é: ao contrário de O Nascimento de uma Nação, os preconceitos do diretor não chegam a dominar a tela de forma absoluta. Para começar, mesmo que alguns sacerdotes judeus tenham sido responsáveis pela morte de Jesus há 2.000 anos, não vejo como seus atuais descendentes poderiam ser culpados por isso (seria o mesmo que condenarmos todo o povo alemão, durante os próximos dois milênios, pelas ações de Hitler e seus subordinados). E posso não ser católico (como já disse em minha análise sobre A Última Tentação de Cristo, não sigo religião alguma), mas creio que estou correto ao afirmar que, se Jesus veio à Terra a fim de morrer por nossos pecados, então ninguém pode ser `culpado` por sua morte que, afinal, já teria sido `programada` pelo próprio Deus.

Mel Gibson poderia ter evitado concentrar toda a responsabilidade pela morte de Cristo nos sacerdotes judeus, é verdade. Acreditar que o anti-semitismo é coisa do passado é, infelizmente, uma ilusão (nos próprios fóruns do Cinema em Cena já li coisas assustadoras, como um leitor que disse achar `triste que Woody Allen, como judeu, estivesse sem dinheiro` e outro que, no fórum da crítica sobre O Nascimento de uma Nação, ostenta com orgulho sua afiliação aos skinheads). Porém, não será A Paixão de Cristo que irá propagar o preconceito (por outro lado, também não vai colaborar para exterminá-lo).

O fato é que Gibson, como católico fervoroso, fez o filme que queria e tinha direito de fazer (a mão que aparece segurando o prego sobre a palma de Cristo é sua, o que indica seu envolvimento com a história). Da mesma forma, os católicos devem compreender que nem todos aqueles que apontam os elementos perniciosos do longa estão atacando sua Fé. É uma simples questão de respeito mútuo e bom-senso.

E voltamos, portanto, ao grande problema de A Paixão de Cristo: com tantas mensagens relevantes e belas existentes na história de Jesus Cristo, Gibson optou por se concentrar justamente em uma que ignora totalmente a compaixão e o amor – dois sentimentos que, acredito, eram preciosos para alguém que, de acordo com a Bíblia, morreu por nossos pecados.

(Obs: Publiquei, também, um artigo sobre o filme na seção Conversa de Cinéfilo. Para ler, clique aqui.)

6 de Março de 2004

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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