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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
21/11/2019 01/01/1970 5 / 5 3 / 5
Distribuidora
Arteplex Filmes
Duração do filme
75 minuto(s)

Bixa Travesty
Bixa Travesty

Dirigido por Kiko Goifman e Claudia Priscilla. Com: Linn da Quebrada, Jup do Bairro.

Em todas as suas falas, a cantora Linn da Quebrada usa pronomes femininos ao se referir a coletivos, quebrando a regra gramatical de converter para o masculino qualquer grupo que contenha ao menos um elemento deste gênero (vocês sabem: ao falarmos de uma equipe que tenha 99 mulheres e um homem, diremos “eles” em vez de “elas”). Assim, no vocabulário de Linn, “todas somos”, mesmo que este “todas” inclua machos. Pode parecer uma rebeldia boba, uma trivialidade, mas pensar isto é um erro colossal: a língua é poderosa e a escolha de palavras, por mais casual que pareça, transforma ideias em contágios, ajudando a mudar consciências uma frase por vez.


Performática ao extremo, Linn é o centro do documentário Bixa Travesty, dirigido por Kiko Goifman (Morte Densa) e Claudia Priscilla, que reúne imagens de arquivo, registros pessoais, passagens de várias apresentações da cantora (e de sua parceira igualmente talentosa Jup do Bairro) e sequências nas quais a protagonista conversa diretamente com a câmera – e com o espectador –, falando ao microfone como se estivesse em um programa de rádio. A combinação de todas estas abordagens confere dinamismo à narrativa, que também se beneficia imensamente da eloquência e da inteligência de Linn, dona de uma retórica admirável.

Discutindo temas que vão desde a utilização da religião como arma de conformação diante da miséria, numa romantização da pobreza, até o machismo sistêmico que faz novas vítimas a cada segundo entre mulheres e na comunidade LGBTQ, Linn e Jup protagonizam conversas instigantes que demonstram o quanto já refletiram sobre quem são, o que querem ser (ou não) e como são percebidas pelo mundo de modo geral. É estimulante, por exemplo, acompanhá-las em suas observações sobre como o corpo da travesti é limitado, de certa forma, pela presunção de que deve necessariamente refletir a anatomia feminina; ora, para se identificar como mulher, é obrigatório implantar seios e/ou remover/esconder o pênis? Não seria esta mais uma imposição do olhar masculino? “Estou me sentindo cada vez mais engraçada”, diz Jup do Bairro ao falar sobre o assunto – e não num contexto positivo, como diria uma comediante, mas por alterar a aparência para se ajustar ao que outros determinaram como esperado de uma travesti.

E é precisamente por isso que, para elas, seus corpos são armas políticas apenas por existirem e saírem às ruas: serem vistas já é um manifesto, assim como o ato de amar alguém com identificação de gênero diversa daquela comumente aceita pelos indivíduos mais conservadores da sociedade. Neste aspecto, um beijo em público pode atuar como uma bomba, não sendo acaso que Linn se veja como uma “terrorista de gênero”.

Lamentavelmente, se a transexualidade fosse, digamos, uma etnia árabe, o Brasil seria a faixa de Gaza: país que mais mata travestis e transexuais (em 2017, foram 179 assassinatos), o Brasil é também – vejam só – o que mais gera pesquisas sobre vídeos protagonizados por transexuais em sites pornográficos, escancarando a hipocrisia de uma sociedade tomada por preconceitos. “Eu transo com você, mas não te beijo”, segundo uma amiga de Linn ouvida no documentário, é a lógica de muitos homens cis que se identificam como heterossexuais mesmo transando com travestis – e percebam como esta é uma postura que revela muito sobre a visão do sexo como arma, como algo isolado de qualquer afeto (e não estou falando de “amor”, que fique claro).

De onde vem toda essa violência? Qual é a motivação real por trás da agressão a travestis? Qual é a origem deste incômodo? Seria o medo de se ver excitado? O receio diante do que é “diferente” e, consequentemente, longe da própria realidade? Por que tantos homens abandonaram as salas de cinema durante Praia do Futuro quando o personagem de Wagner Moura transava com outro homem? A imagem do Capitão Nascimento sendo penetrado e gostando disso seria desconfortável por quê?

Explorando muito bem o talento de Linn da Quebrada e sua sintonia criativa com Jup do Bairro, Bixa Travesty é um filme que, além de tudo, atua como um bom radar acerca das preconcepções do próprio espectador – que, muitas vezes, pode nem se dar conta destas (e, sim, estou me incluindo). Uma das letras da cantora, por exemplo, traz os versos “Me arrumo tanto para ser bonita / mas até agora só deram risada” – um desabafo/protesto que complementa aquela discussão sobre percepção do feminino que mencionei anteriormente. Pois depois de ouvir a música e aplaudi-la, boa parte do mesmo público presente na sessão da Berlinale riu ao ver uma amiga de Linn vestindo roupas coloridas e um penteado elaborado enquanto cozinha.

Pelo visto, ainda somos muito mais preconceituosas do que queremos admitir.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Berlim 2018.

19 de Fevereiro de 2018

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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