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Críticas por Pablo Villaça

O Irlandês
The Irishman

Dirigido por Martin Scorsese. Roteirizado por Steven Zaillian. Com: Robert De Niro, Joe Pesci, Al Pacino, Anna Paquin, Ray Romano, Stephen Graham, Bobby Cannavale, Jesse Plemons, Kathrine Narducci, Domenick Lombardozzi, Sebastian Maniscalco, Marin Ireland, Jake Hoffman, Stephanie Kurtzuba, Louis Cancelmi, Welker White, Lucy Gallina, Jim Norton, Gary Basaraba e Harvey Keitel.

(Contém spoilers.)


Ao longo de sua carreira, Martin Scorsese dirigiu comédias de humor sombrio (O Rei da Comédia, Depois de Horas), dramas românticos (A Época da Inocência), meditações teológicas (A Última Tentação de Cristo, Silêncio), suspenses que beiram o terror (Cabo do Medo, Ilha do Medo), estudos de personagem (Vivendo no Limite, Taxi Driver, Alice Não Mora Mais Aqui), documentários sobre Cinema (Minha Viagem à Italia), sobre cineastas (Carta para Elia), sobre músicos (George Harrison, Bob Dylan), sobre escritores (Public Speaking) e registros de shows ou do histórico de bandas célebres (The Last Waltz, Shine a Light). No entanto, suas colaborações para os filmes de gângster se tornaram tão celebradas que há aqueles que parecem acreditar que sua carreira se resume a Os Bons Companheiros, Cassino e Os Infiltrados - e mesmo que este fosse o caso, muitos cineastas venderiam a alma por isto.

Mas um diretor como Scorsese, profundo conhecedor da linguagem e da História do Cinema, sabe como a essência de uma obra pode ser multifacetada: um estudo de personagem pode também se tornar um tratado social; uma comédia pode discutir o culto às celebridades e um filme de gângster pode ser uma reflexão sobre o ocaso da vida.

Como é O Irlandês.

É fascinante, aliás, encarar este seu mais recente trabalho como uma consequência lógica da trilogia composta por Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros e Cassino: o primeiro acompanhava gângsteres baratos, sem poder, que se encontravam no subsolo da hierarquia do crime organizado; o segundo, por sua vez, trazia personagens que cresciam dentro da organização e atingiam certo status, embora fossem limitados por sua ascendência ou temperamento; ao passo que o terceiro enfocava indivíduos cujo poder se tornava – ao menos por algum tempo – inquestionável, atingindo quase o topo da pirâmide. Pois O Irlandês não apenas se interessa por aqueles que chegaram ao topo (Russell Bufalino, Jimmy Hoffa) como faz questão de segui-los até o desfecho de suas carreiras e de suas vidas. Neste aspecto, se aproxima mais de uma meditação sobre a efemeridade de nossas existências e a futilidade de muito do que fazemos do que de uma narrativa sobre crime e violência.

Escrito por Steven Zaillian a partir do livro “I Heard You Paint Houses”, de Charles Brandt, o longa acompanha a trajetória de Frank Sheeran (De Niro), um ex-combatente da Segunda Guerra que, depois de trabalhar como motorista de caminhão, se envolve com o poderoso mafioso Russell Bufalino (Pesci), que, por sua vez, o apresenta ao notório Jimmy Hoffa (Pacino), presidente dos Teamsters, sindicato nacional de caminhoneiros que por décadas se estabeleceu como uma das forças políticas mais influentes dos Estados Unidos. Ao longo de seus breves 209 minutos (não estou sendo irônico), O Irlandês retratará décadas das vidas destas figuras e de outras como Angelo Bruno (Keitel), Tony Provenzano (Graham) e Bill Bufalino (Romano), o que permite que Scorsese se reúna a antigos e importantes colaboradores de sua carreira – e há uma cena, em específico, que traz De Niro, Pesci, Pacino e Keitel e que ao surgir na tela me levou a pensar “estes são meus Avengers!”.

Com uma estrutura construída em torno das reflexões de um Frank já envelhecido que agora reside em um asilo para idosos e também de uma viagem feita por este ao lado de Russell e de suas respectivas esposas (Kurtzuba e Narducci), o filme investe numa cronologia fluida que frequentemente justapõe as versões jovens daquelas pessoas (resultado de um efeito de rejuvenescimento digital notável) às suas figuras fragilizadas pela idade e pelas pancadas da vida, tornando-as mais humanas ao ressaltar como nem todo o poder e a arrogância da juventude puderam salvá-las da implacabilidade do tempo.

Aliás, a diferença básica entre O Irlandês e seus companheiros de “quadrilogia” pode ser sintetizada através da performance de Joe Pesci: se antes o ator encarnou tipos explosivos e imprevisíveis que manifestavam sua força através de palavrões e gestos ostensivos de violência, aqui ele compõe Russell Bufalino como um homem de modos contidos, tom de voz sempre baixo e uma natureza que por vezes se revela calorosa e afetuosa – e é notável como, através destas escolhas, Pesci leva o espectador a considerar o sujeito infinitamente mais perigoso e letal do que o Tommy de Os Bons Companheiros e o Nicky de Cassino. Notem, por exemplo, seu olhar na cena em que Frank é chamado para prestar satisfações a Angelo Bruno e percebam como, sem praticamente mover um músculo da face, ele parece dizer ao primeiro: “Cuidado com o que vai falar a seguir; sua vida depende disso”. Ao mesmo tempo, seu afeto por Frank e pela família deste jamais deixa de ser patente – e que ainda assim tenhamos consciência de que ele não hesitaria em eliminar o amigo caso julgasse necessário é prova da magnitude do talento de Pesci.

Feito similar é alcançado por Al Pacino, um ator brilhante que infelizmente nos últimos 15 ou 20 anos vinha se entregando cada vez mais a muletas e tiques de interpretação, mas que aqui volta a nos lembrar de sua capacidade de comunicar um mundo de sentimentos através de um olhar ou de uma mudança súbita de expressão – e há dois momentos em O Irlandês que se encontram entre os melhores de sua linda carreira e que surgem separados por apenas alguns minutos: aquele em que ouve Russell dizer que “algumas pessoas acham que você não está demonstrando gratidão”, quando Hoffa move a cabeça para trás e olha para o outro como se tivesse ouvido um absurdo, e aquele em que Frank transmite um recado que sugere uma ameaça e que Pacino recebe com uma sucessão de percepções que atravessam seu rosto em questão de milissegundos, começando com surpresa, passando pelo choque, uma sugestão de medo e, finalmente, uma incredulidade ofendida com a mera possibilidade de se ver ameaçado. Além disso, Pacino torna Hoffa uma figura calorosa e que desperta o afeto do espectador, o que adiciona um elemento dramático importante à narrativa (algo que faltava, por exemplo, à versão de Jack Nicholson no mediano Hoffa).

Como já é costumeiro nos trabalhos de Scorsese, por sinal, o elenco secundário do longa é composto por intérpretes que expandem o universo do filme ao criarem tipos multifacetados mesmo com pouco tempo em tela: Ray Romano, como o advogado Bill Bufalino, demonstra a capacidade do sujeito de se adaptar moralmente às necessidades de cada situação, ao passo que Stephen Graham, como Tony Provenzano, surge explosivo e com uma arrogância que, por contraste, torna Hoffa razoável. Enquanto isso, Anna Paquin se converte na bússola moral da narrativa, transformando seus olhares em percepções e julgamentos que atuam como representantes do próprio espectador (e claramente do diretor) ao enxergar por trás da fachada de machismo e lealdade e identificar o ego, a mesquinhez e a crueldade ocultos.

E há, enfim, Robert De Niro, que talvez realize o trabalho mais difícil do projeto, já que seu Frank Sheeran é, na maior parte do tempo, um indivíduo reativo, assumindo as rédeas da situação apenas em instantes pontuais de violência, mas sendo forçado a tentar conciliar partes opostas de um conflito no qual deve fidelidade e respeito a ambas – além de, ao seu modo, amá-las. No entanto, se durante as três primeiras horas De Niro cria um retrato sutil e complexo, no  último ato finalmente ganha a oportunidade de dominar emocional e tematicamente o filme ao retratar os anos finais da vida do protagonista, o que discutirei mais adiante.

Conferindo um humor surpreendente ao filme sem com isso sacrificar o peso daquele mundo frio e cruel que retrata, Scorsese é capaz de expor informações chocantes e rir de seu absurdo ao mesmo tempo (como no plano que acompanha uma arma até o fundo do rio, juntando-se a dezenas de outras), demonstrando também sua habilidade de esclarecer elementos fundamentais apenas com movimentos simples de câmera – como aquele que salta entre vários personagens, retornando continuamente ao de Joe Pesci a fim de salientar seu poder e influência. Da mesma forma, o cineasta, auxiliado pelo excelente diretor de fotografia Rodrigo Prieto, faz um excepcional uso das sombras como atmosfera e caracterização – e percebam a diferença entre a luz sobre De Niro e Pesci na cena do café da manhã, que tudo diz sobre a posição de cada um quanto ao que está sendo discutido. E se a frieza da qual aqueles indivíduos são capazes já não houvesse sido fartamente estabelecida anteriormente, isto ficaria mais do que patente na sequência que acompanha os preparativos cuidadosos para um crime no final do segundo ato.

Porém, como já apontado, O Irlandês é menos sobre o submundo que expõe e mais sobre a fragilidade e a efemeridade de nossas vidas, algo que Scorsese reforça desde o primeiro plano, quando, num plano-sequência que remete ao do Copacabana em Os Bons Companheiros, nos conduz pela melancolia do asilo que abriga Frank – e só o contraste desta melancolia com o glamour e o poder expressados pela sequência do filme de 1990 já seria o bastante para indicar as intenções do realizador. É importante, também, constatar como a ideia de incluir legendas que ocasionalmente revelam o destino de personagens menores fortalece a mensagem acerca da futilidade de todas aquelas tramoias e esquemas, já que, no fim das contas, o destino de todos será o mesmo – e aqui também é essencial lembrar da diferença entre o jantar na prisão visto em Os Bons Companheiros, que soa como uma celebração do poder daqueles homens mesmo atrás das grades, e aquele que surge no terceiro ato de O Irlandês e que aponta apenas a decadência física de todos.

Esta derradeira meia hora do filme, aliás, é devastadora não pela selvageria dos personagens, mas pela tragédia de suas consequências, já que nada resta a Frank a não ser todo o tempo do mundo para ser atormentado pela consciência e para viver e sentir seu exílio emocional, como se o melhor destino possível para aqueles indivíduos fosse uma morte violenta ainda no auge e que os pouparia de um epílogo definido pelo declínio. Assim, não é difícil enxergar, em Frank, um pouco do Salieri de Amadeus – e até mesmo o recurso da confissão como narração abre espaço para que enxerguemos o preço de todas as suas ações sobre sua alma: se Salieri se condoía por ter causado a morte de um prodígio criado por Deus, Frank se flagela, entre outras coisas, por um telefonema que resume sua descida completa ao inferno.

O que nos traz ao último plano de O Irlandês e que dialoga de modo inequívoco com aquele que encerra O Poderoso Chefão ao enfocar o protagonista em um aposento escuro visto através de uma porta que se fecha (ou quase): a diferença é que, se no filme de Coppola o plano evocava o poder conquistado pelo protagonista à custa da exclusão de sua família, aqui Scorsese, sempre mais severo no julgamento moral de seus personagens e em sua culpa católica, sugere como aquele modo de vida traz apenas perda, dor e solidão.

O Irlandês é uma obra-prima.

27 de Novembro de 2019

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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