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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
30/09/2021 28/09/2021 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Universal
Duração do filme
163 minuto(s)

Sem Tempo para Morrer
No Time to Die

Dirigido por Cary Joji Fukunaga. Roteiro de Neal Purvis, Robert Wade, Cary Joji Fukunaga e Phoebe Waller-Bridge. Com: Daniel Craig, Léa Seydoux, Rami Malek, Lashana Lynch, Ralph Fiennes, Ben Whishaw, Naomie Harris, Rory Kinnear, Jeffrey Wright, Billy Magnussen, David Dencik, Ana de Armas, Dali Benssalah, Lisa-Dorah Sonnet, Hugh Dennis e Christoph Waltz.

Ao longo de seus 59 anos de história e 25 produções oficiais (ou seja: desconsiderando o horrível Cassino Royale, de 1967, e o medíocre Nunca Mais Outra Vez, de 1983), a franquia construída em torno do espião James Bond poucas vezes se apegou à continuidade de um filme para o outro: a primeira bondgirl, Sylvia Trench (Eunice Gayson) apareceu rapidamente na continuação e a falecida esposa do personagem, Teresa di Vicenzo (Diana Rigg), foi mencionada em Somente para os Seus Olhos (no qual Bond se vinga de Blofeld já na sequência inicial) e em Licença para Matar. Além destes raros exemplos, há, claro, A Serviço Secreto de Sua Majestade, no qual o herói, ali vivido por George Lazenby, se demite e o vemos removendo da gaveta alguns objetos usados nas aventuras anteriores.


Isto, claro, mudou quando Daniel Craig assumiu o papel em 2006, já que suas cinco incursões ao universo criado por Ian Fleming seguiram uma linha narrativa mais ou menos contínua, chegando a fazer visitas importantes ao passado do agente britânico. Apesar da ideia ambiciosa, os resultados foram irregulares: depois do excelente Cassino Royale, a série tropeçou feio em Quantum of Solace (um dos piores da franquia), recuperou-se no ótimo Skyfall e voltou ao corriqueiro em Spectre até chegar neste desfecho que, assim como A Serviço Secreto de sua Majestade, frequentemente destoa de tudo que passamos a esperar destes longas – e esta é apenas uma das várias similaridades que divide com aquele filme.

Que, devo apontar, é o meu favorito absoluto da série.

Dirigido por Cary Joji Fukunaga (True Detective), Sem Tempo para Morrer já surpreende em sua introdução, quando, em vez de encontrarmos Bond em uma missão, vemos um extenso flashback de um incidente traumático da infância de Madeleine Swann (Seydoux), psiquiatra com a qual Bond (Craig) se envolveu em Spectre. Encenada como saída de um filme de terror, a sequência também introduz o vilão Safin (Malek) e em seguida retorna ao presente e a um protagonista agora aposentado que sonha em passar seus dias restantes ao lado da amada. “Nós temos todo o tempo do mundo”, ele diz à companheira enquanto esta apoia a cabeça em seu ombro – um momento romântico que, no entanto, traz conotações sombrias quando nos lembramos de que esta era a última fala de A Serviço Secreto, dita pelo sujeito enquanto acariciava os cabelos da esposa que acabara de ser assassinada. E que o belo tema composto por John Barry para aquela obra seja resgatado aqui apenas soma à ameaça subjacente.

Esta passagem define, em sua nostalgia, todo o filme: dos créditos iniciais que resgatam momentos da série até o instante em que Bond atira um crachá na lata de lixo com a mesma precisão com que a versão de Sean Connery pendurava seu chapéu ao entrar na sala de espera de “M”, Sem Tempo para Morrer é uma produção consciente de seu lugar na história da franquia – e, não à toa, a última vez em que vimos “M”, “Q”, Moneypenny, Felix Leiter e Blofeld em um só capítulo ocorreu em 1971, em Os Diamantes São Eternos. (E Blofeld jamais teve uma entrada em cena construída com tanto suspense quanto a que vemos aqui, mais do que compensando o desapontamento de Spectre.) Ao mesmo tempo, o tom nostálgico/melancólico não impede os realizadores de incluírem todos os absurdos que se tornaram parte fundamental da série: há o vilão megalomaníaco cujo plano tem escala global – desta vez envolvendo nanobots ativados por sequências específicas de DNA -; o quartel-general gigantesco cheio de passagens subterrâneas ocupado por este; tiradas engraçadinhas que acompanham as mortes de cada capanga; perseguições de carro; explosões; embates corporais e múltiplas e belas locações em vários países.

Mas não só. Escrito por Neal Purvis e Robert Wade (veteranos da franquia) com revisões feitas pelo diretor Cary Fukunaga e por Phoebe Waller-Bridge (!), o roteiro também conta com elementos que trazem bem-vindas inovações ao universo, como a agente vivida por Lashana Lynch, a breve incursão à vida amorosa de “Q” (Whishaw) e os conflitos morais e éticos de “M” (Fiennes). Por outro lado, nem os quatro roteiristas conseguem trazer sentido aos planos genéricos e confusos de Safin, que ainda é prejudicado por mais uma performance repleta de maneirismos do geralmente pavoroso Rami Malek, que parece acreditar que dizer lentamente todas as falas do vilão numa voz sussurrada e cheia de pausas artificiais irá conferir magicamente uma dimensão trágica ao personagem em vez de torná-lo apenas ainda mais desinteressante.

Por sorte, o fato é que Safin acaba sendo um detalhe menor durante a maior parte da projeção, que se beneficia da segurança absoluta de Daniel Craig, que, depois de 15 anos no papel, encarna James Bond com um equilíbrio notável entre força e vulnerabilidade. É notável, por exemplo, observar rápidos instantes como aquele no qual o agente se serve de um gole de bebida, salta o balcão do bar em um só movimento, caminha para fora do prédio e já vira o corpo disparando contra um inimigo localizado em outro edifício – algo que Craig faz com tamanha naturalidade que é fácil ignorar a disciplina envolvida em sua expressão corporal. Do mesmo modo, o ator demonstra seu preparo físico no incrível plano que, durando cerca de dois minutos, o acompanha enquanto enfrenta vários adversários ao subir as escadas do complexo que abriga o ato final. Aliás, as lutas e demais sequências de ação vistas em Sem Tempo para Morrer (incluindo a ótima participação de Ana de Armas) são encenadas sempre com clareza absoluta, evitando os cortes frenéticos e a câmera excessivamente instável que vários diretores do gênero adotaram como padrão. Neste aspecto, é bom ressaltar como o diretor de fotografia Linus Sandgren tampouco segue o clichê irritante de acreditar que uma narrativa precisa sacrificar a saturação da paleta para soar dramática; aqui, as cores são frequentemente quentes e intensas e ainda assim o impacto emocional jamais é sacrificado.

E, sim, eu disse “impacto emocional” ao discutir um filme da série 007 – algo que, atrevo dizer, é possível identificar em apenas quatro outros títulos: o já mencionado A Serviço Secreto de Sua Majestade, Licença para Matar (cuja missão basicamente envolve uma vingança pessoal de Bond), Cassino Royale (que explora bem o destino de Vesper Lynd) e Skyfall (que transforma a “M” de Judi Dench em uma trágica figura materna). Desta vez, a densidade dramática é construída não apenas pelo envolvimento romântico entre Bond e Madeleine, mas pela óbvia exaustão do espião diante das ações irresponsáveis do governo britânico – um sentimento que Felix Leiter (Wright) divide em relação aos seus chefes norte-americanos. Assim, tudo que ocorre ao longo de Sem Tempo para Morrer é resultado não dos planos do vilão, mas de quem James Bond se tornou, daquilo em que passou a acreditar e, principalmente, de tudo que deixou de julgar prioritário. Porém, ao conferir maior importância às pessoas que ama do que aos interesse de Sua Majestade, ele também se torna vulnerável – e há um instante em particular no qual isto se torna patente: aquele em que, carregando uma criança, é surpreendido por um capanga e, sem defesa, apenas vira o corpo para servir de escudo para a menina.

O que nos traz ao desfecho do longa (e a partir de agora vale o alerta de spoilers).

Preenchendo os 40 minutos finais do filme – que, com 163 minutos, é o mais longo da franquia -, o ato final de Sem Tempo para Morrer envolve, como seria de se esperar, a invasão ao QG de Safin em uma missão dupla de resgate e destruição. A esta altura, já se tornou claro que Bond se tornou pai de uma garotinha ao lado de Madeleine, mas as implicações desta revelação parecem chocar o próprio herói, que, num dos melhores momentos de Craig na série, apresenta as duas à sua colega Nomi dizendo “Elas são minha…” apenas para hesitar antes de completar a frase num sussurro para si mesmo e com expressão confusa: “… família?”. Não é surpresa, portanto, que logo a seguir as duas sejam colocadas em um pequeno bote rumo à segurança e a fotografia inspirada de Sandgren retrate-as indo em direção à luz em uma imagem que claramente simboliza a promessa de um futuro feliz.

Que, considerando a trajetória estabelecida nestes cinco filmes, de forma alguma poderia se concretizar, já que um tema recorrente no reinado de Daniel Craig são os esforços frustrados de Bond para se humanizar de algum modo e forjar relações emocionais significativas. Além disso, se lembrarmos que a sequência inicial de Cassino Royale enfocava os primeiros passos do agente como “00”, é apropriado que os minutos finais de seu envolvimento com o personagem enfoque sua morte – o que o torna, em teoria, o único ator que encarnou toda a carreira de James Bond no MI-6. E para tornar tudo mais elegante de um ponto de vista estrutural, se Cassino Royale retratava 007 atirando pela primeira vez em direção à câmera, aqui Fukunaga cria uma rima visual fantástica ao enquadrar Craig em um corredor subterrâneo, sob arcos que remetem ao cano da arma da clássica vinheta, e caminhando em direção ao centro do quadro antes de girar e disparar.

Mas se simbolicamente é curioso que Vesper e Felix tenham morrido na água enquanto o herói é destruído pelo fogo das explosões, ainda mais significativo é constatar como, no fim, foi morto por mísseis disparados pelo mesmo governo e pela mesma agência que passou a vida defendendo e representando.

Uma tragédia muitas vezes anunciada que se concretizou apenas quando ele realmente tinha algo a perder. Depois de 62 anos retratado como resquício da Guerra Fria, como relíquia sexista de um mundo ultrapassado e como o protótipo do herói cinematográfico moderno, é fascinante que seu nome seja preservado naquele universo por uma mulher enlutada que quer mantê-lo vivo na memória da filha que geraram. E jamais pude imaginar que um dia me emocionaria ao ouvir as palavras

Seu nome era Bond. James Bond.

22 de Novembro de 2021

Observação: Não tenho qualquer ilusão a respeito do comprometimento dos produtores da série com a força do final que aqui criaram. Os próprios créditos finais anunciam que “Bond irá retornar”. Até que isto aconteça, contudo, vou me permitir acreditar que a integridade dramática deste fantástico filme será preservada. Sou bobo assim.

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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