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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
31/12/2021 17/12/2021 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Netflix
Duração do filme
121 minuto(s)

A Filha Perdida
The Lost Daughter

Dirigido e roteirizado por Maggie Gyllenhaal. Com: Olivia Colman, Jessie Buckley, Dakota Johnson, Ed Harris, Peter Sarsgaard, Dagmara Dominczyk, Jack Farthing, Paul Mescal, Oliver Jackson-Cohen, Panos Koronis, Robyn Elwell, Ellie Blake, Athena Martin e Alba Rohrwacher.

Uma mulher de meia-idade viajando desacompanhada não está apenas só; é uma pessoa solitária. Sem um homem ao seu lado ou crianças correndo à sua volta, ela obviamente vive uma existência sem propósito e deve sentir uma infelicidade colossal. Portanto, é claro que ela receberá com satisfação – talvez até gratidão – a abordagem de estranhos. Ao menos, esta é a visão que muitos projetarão sobre ela como resultado de uma cultura condicionada a enxergar a mulher não como ser independente, mas como base de uma família. Aliás, trata-se de uma percepção tão enraizada que, mesmo reconhecendo este equívoco, durante boa parte do primeiro ato de A Filha Perdida me peguei enxergando a protagonista como uma pessoa entristecida por seu isolamento em vez de constatar o óbvio: que ela parecia perfeitamente à vontade em suas férias.


E esta não é a única vez no filme em que convenções sociais sexistas acabam por provocar julgamentos incorretos a respeito da professora universitária Leda (Colman), que aluga um apartamento num vilarejo grego para descansar - e trabalhar - durante seu período de folga. Satisfeita com sua escolha (sua exclamação contida de alegria ao ver o imóvel é reveladora), a mulher passa os dias na praia enquanto estuda e aproveita o silêncio – até que este é destruído pela chegada de uma família de tamanho considerável que trata o ambiente como propriedade privada, usando-o para festejar um aniversário em meio a gritos, brigas e brincadeiras. No entanto, apesar da irritação a atenção da protagonista é atraída pela jovem Nina (Johnson) e a filha pequena desta, que pouco depois provoca um susto em todos ao desaparecer, sendo encontrada por Leda e devolvida à família aliviada. A calma dura pouco, porém, já que a garotinha entra em crise ao perceber que agora foi sua boneca favorita que sumiu. O que ninguém ali sabe? Que foi a heroína do dia, a inofensiva professora, que pegou o brinquedo.

Roteirizado pela diretora Maggie Gyllenhaal (estreante em ambas as funções) a partir do livro de Elena Ferrante, A Filha Perdida é um estudo de personagem e também de expectativas oriundas de convenções sociais e culturais moldadas por homens – em especial, sobre o conceito de “maternidade”. Porque para entender (ou tentar) os motivos de Leda para roubar a boneca, é fundamental compreender sua história, que é revelada aos poucos através de flashbacks que a trazem na juventude (e vivida por Jessie Buckley) tentando conciliar seus estudos com o papel de mãe de duas crianças pequenas que exigem sua atenção constante. Sentindo-se frustrada por ter que lidar praticamente sozinha com as filhas, já que o marido (Farthing) – também acadêmico – parece achar que sua própria carreira tem precedência sobre a da esposa, a jovem Leda acaba por se envolver com um colega (Sarsgaard) e toma a decisão de deixar a família para se dedicar às suas pesquisas.

Analise sua própria reação ao ler esta informação. A maior probabilidade é a de que você tenha julgado severamente a protagonista, o que é compreensível: a m(p)aternidade é um dever que, acidental ou intencional, assumimos sem consultar nossos filhos e que, assim, nos torna responsáveis por estes. Contudo, na maior parte das vezes, este julgamento se torna mais implacável quando é a mãe que se afasta (ou dá preferência à carreira); o nível de cobrança habitualmente dirigido aos homens é bem menor – e basta que o pai cuide da criança por algumas horas, dê banhos ou brinque ocasionalmente para que seja considerado “participativo”. Já a mãe não deve apenas participar; ela deve ser – e espera-se que toda a sua identidade passe a ser moldada pela maternidade. Não à toa, embora A Filha Perdida traga vários exemplos de pais que abandonaram suas famílias, é Leda quem acabará sendo mais cobrada e julgada por suas ações – inclusive, em parte, por si mesma.

É revelador, por exemplo, como Callie (Dominczyk), embora ainda grávida do primeiro filho, se choca ao ouvir a outra dizer que se esqueceu de detalhes da infância de suas filhas ou que não fica ansiosa ao se afastar destas por alguns dias – e, do mesmo modo, é impossível deixar de perceber a ironia na postura do professor Hardy (Sarsgaard), que não vê problemas em transar com uma mulher casada, mas imediatamente a olha quase com asco por afirmar que não gosta de conversar com as filhas pelo telefone, como se esta afirmação fosse uma ameaça maior ao bem-estar das crianças do que o relacionamento entre os dois adultos. Em outras palavras: não basta que ela trate as filhas com carinho; como mulher, ela é obrigada a amar todos os aspectos da maternidade.

Talvez por isto a personagem de Dakota Johnson (uma atriz cada vez melhor) lance um olhar tão intrigado sobre Leda quando conversam pela primeira vez: sentindo-se exaurida pela própria filha, ela enxerga a sinceridade da outra (“Filhos são uma responsabilidade sufocante”) com surpresa e mesmo admiração, vendo ali alguém capaz de compreender o que está vivendo e, como consequência, permitindo que ela talvez não precise se sentir culpada pelo que está sentindo. Aliás, a confiança de Gyllenhaal no trio principal de atrizes se torna patente pela frequência com que constrói cenas inteiras em planos fechados que dependem da expressividade das intérpretes – e a instabilidade frequente da câmera, que sugere fortes tempestades sob a superfície plácida das personagens, demonstra também o talento da diretora de fotografia Hélène Louvart (que, diga-se de passagem, trabalhou em dois outros projetos notáveis centrados nas dificuldades da experiência feminina: A Vida Invisível e Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre).

Mas as duas performances centrais pertencem, sem dúvida alguma, a Olivia Colman e Jessie Buckley (fantástica em Estou Pensando em Acabar com Tudo), que vivem as duas “versões” de Leda com um equilíbrio impecável entre frustração, remorso (ou algo parecido a isso, como discutirei a seguir) e convicção. Se Buckley evoca com brilhantismo o esgotamento de uma jovem mãe que ama as filhas, mas não quer se deixar definir por estas, Colman consegue a proeza de conferir calor humano e carisma a uma figura que nas mãos de uma atriz menos hábil poderia ser vista apenas como egoísta, fria e antipática. É evidente, por exemplo, como Leda tem amor e fascínio pelas filhas, discutindo aspectos das personalidades destas ao mesmo tempo com carinho e com a objetividade de alguém que realiza uma autópsia – e poucos momentos foram tão tocantes no Cinema em 2021 quanto aquele em que, ao responder o que achou do período que esteve longe das filhas, a mulher responde “Foi maravilhoso” entre lágrimas e com um misto de nostalgia, alívio e (talvez) culpa.

O que nos traz à pergunta central e envolve minha hesitação quanto a palavras como “remorso” e “culpa”: por que Leda rouba a boneca? Há, claro, tanto aspectos psicológicos quanto simbólicos neste ato (e a emoção não se manifesta com frequência através de signos?) e que têm raiz no flashback que traz a protagonista presenteando a filha pequena com uma boneca que a acompanhou na infância apenas para ver a criança vandalizando o brinquedo – o que a leva a atirá-lo pela janela, destruindo-o. O que estabelece uma ligação evidente com a boneca que rouba no presente e que, idêntica à original, Leda passa boa parte da narrativa tentando consertar. Seria este esforço uma forma de reconstruir o que teria destruído em sua relação com as filhas? Ou – pensando em como meninas são condicionadas desde cedo ao papel de mães através de suas bonecas – o ato de tirar o brinquedo da garotinha é uma atitude de empoderamento, de tentar impedir que a menina seja “treinada” a se definir pela maternidade que deverá (ênfase no “deverá”) exercer no futuro? Ou, ainda, seria a boneca original, do passado, uma promessa de maternidade ideal – bonecas não dão trabalho como crianças de verdade – e que se esfacelou diante da experiência real, o que tornaria o esforço de reconstruí-la um modo de resgatar a aspiração maternal inicial, pré-realidade?

Ou sou eu quem mais uma vez está projetando percepções sexistas sobre a protagonista e tentando enxergar em sua postura um remorso e uma culpa que não estão lá? Pois o fato é que Leda não procura suavizar suas ações, admitindo inclusive que voltou para casa não por se preocupar com as filhas, mas por sentir saudade destas (uma ação, portanto, baseada em egoísmo) – e, assim, por que eu, como espectador, insisto em vê-la se penitenciando por decisões sobre as quais ela mesma não vê necessidade de se condenar? O “instinto materno” – uma construção conveniente para os homens e, portanto, também sexista – não é uma obrigação feminina; ser mãe não deveria ser visto como parte fundamental da experiência de qualquer mulher e que provocaria incompletude ao ser negligenciada.

Um filme como A Filha Perdida é, em suma, um argumento poderoso em prol da diversidade entre realizadores: como homem hetero cis branco, vi, ao longo do filme, meus prejulgamentos serem testados e contestados, forçando-me a questionar minha posição e minha percepção sobre as personagens e seus dilemas. E sei que a frase anterior – em especial o “homem hetero cis branco” – deve ter provocado suspiros de impaciência em muitos que chegaram até aqui e que encaram este “papo de desconstruído” como um problema, uma amolação contemporânea; o que quero apontar, porém, é que esta seria uma visão redutiva e preguiçosa da discussão. O desejo por uma maior representatividade de minorias históricas não deveria ser apenas uma questão de justiça, mas de curiosidade intelectual, moral e emocional por parte de qualquer um que acredite que a Arte pode e deve fazer mais do que apenas refletir o lugar-comum ou o ponto de vista tradicional que está presente na maioria das obras produzidas desde sempre. Como dizia Roger Ebert, o Cinema (a Arte de modo geral) é uma “máquina de gerar empatia” – e, assim, qual é a graça em vermos sempre as mesmas perspectivas retratadas na tela?

Esta capacidade da Arte de nos fazer enxergar o mundo através do olhar do Outro é o que a torna tão poderosa. E é também o que a leva a ser tão temida por governos autoritários que apostam na intolerância como forma de se manterem vivos.

05 de Janeiro de 2021

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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