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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
22/02/2024 14/12/2023 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Diamond
Duração do filme
130 minuto(s)

Ferrari
Ferrari

Dirigido por Michael Mann. Roteiro de Troy Kennedy Martin. Com: Adam Driver, Penélope Cruz, Shailene Woodley, Gabriel Leone, Giuseppe Bonifati, Daniela Piperno, Michele Savoia, Jack O´Connell, Giuseppe Festinese, Sarah Gadon e Patrick Dempsey.

O Cinema de Michael Mann é povoado por homens obcecados por seus trabalhos, sejam estes legais ou não: há o Frank de Profissão: Ladrão, Will Graham em Caçador de Assassinos, Vincent Hanna e Neil McCauley em Fogo Contra Fogo, Lowell Bergman em O Informante e Vincent em Colateral, para citar apenas os exemplos mais óbvios. Tratam-se de indivíduos cujas vidas pessoais são constantemente sacrificadas (ou inexistem) enquanto se entregam ao que realmente amam fazer – ou “amam”, já que muitas vezes parecem mais prisioneiros de suas obsessões do que praticantes voluntários. Assim, é fácil compreender por que o cineasta se sentiria atraído pela trajetória de Enzo Ferrari, embora, aqui, as questões familiares do personagem também se tornem um aspecto importante da narrativa.


Escrito por Troy Kennedy Martin (cuja morte em 2009 sugere há quanto tempo este projeto ocupa a mente do diretor), Ferrari tem início com uma breve sequência em preto e branco que revela a curta carreira do personagem-título como piloto de corridas até voltar a encontrá-lo em 1957, quando, já dono de uma montadora de carros e de uma escuderia, deve lidar com crises financeiras e de reputação que ameaçam seu jovem império automobilístico. Enlutado pela morte do filho Alfredo no ano anterior, Enzo (Driver) segue casado com a mãe deste, Laura (Cruz), embora o relacionamento conjugal praticamente já não exista e ele tenha uma segunda família formada por Lina (Woodley) e Piero (Festinese), de 11 anos de idade – algo que sua esposa desconhece. Enquanto tenta encontrar uma solução para a situação, já que Piero está prestes a ser crismado e não sabe se poderá assumir o sobrenome do pai, o protagonista se esforça também para salvar a empresa (da qual Laura é cofundadora, possuindo metade das ações) – e, para isso, percebe que terá que vencer a disputada e perigosa corrida de Mille Miglia a fim de atrair novos investidores.

Neste sentido, o filme funciona quase como uma prequel de Ford vs. Ferrari ao retratar como a escuderia italiana viria a se tornar tão dominante nos circuitos de corrida (nasce uma RCU – Racing Cinematic Universe?); a diferença é que, ao contrário do bom longa de James Mangold, o filme de Mann se preocupa menos com o processo de construção e teste dos carros e mais com as dificuldades administrativas enfrentadas por Enzo, o que envolve não apenas o lado econômico, mas de relações com a imprensa, com os funcionários e com os pilotos de sua equipe. Esta pode parecer uma abordagem contraintuitiva, mas é perfeita: quando pode se dedicar apenas aos carros, o sujeito se mostra contente (percebam sua empolgação ao discutir com Piero a modificação na estrutura de uma peça) - o que não é tão bom para gerar conflitos dramáticos -; por outro lado, sua frustração diante das maquinações necessárias para não falir é fascinante por revelar sua lógica fria ao conceber estratégias e como mesmo as vidas de seus pilotos se tornam uma questão secundária quando vistas sob este ângulo.

Esta divisão entre o pessoal e o profissional permite que Mann e o diretor de fotografia Erik Messerschmidt criem tratamentos estéticos distintos para estes dois mundos: enquanto as cenas familiares surgem frequentemente carregadas de sombras e com os personagens tratados com um tom sépia que remete ao que Gordon Willis fez em O Poderoso Chefão (e que por sua vez se inspirava pesadamente na obra de Rembrandt), aquelas que enfocam as corridas exibem cores mais fortes e vibrantes (a começar pelos carros vermelhos da Ferrari), refletindo respectivamente a ansiedade e a satisfação do protagonista em cada ambiente. No entanto, a passagem mais reveladora é aquela envolvendo uma performance da ópera La traviata e durante a qual testemunhamos as lembranças de Enzo, de sua mãe Adalgisa (Piperno), de Laura e de Lina – os três primeiros focados em pessoas que perderam; esta última, no instante em que revelou sua gravidez ao amado. Alternando os flashbacks com imagens dos cantores sobre o palco, Mann e Messerschmidt não registram a apresentação a partir da plateia, mas próximos dos artistas – uma decisão incomum que, no entanto, é importante ao estabelecer a similaridade no enfoque entre estes e os personagens, que, assim, ganham a conotação de figuras operáticas.

Esta característica narrativa, que intensifica o registro do drama, é refletida na trilha de Daniel Pemberton, que descarta qualquer sutileza, invadindo as cenas subitamente e às vezes comentando apenas uma ou duas falas antes de desaparecer com a mesma rapidez (como no instante em que o gerente do banco deixa escapar a existência de uma propriedade, Laura nota a discrepância e o compositor salienta o comentário da mulher – “Castelvetro? Nós temos uma propriedade em Castelfranco.” – com uma rápida intervenção musical). De maneira similar, a rapidez com que Enzo substitui um piloto morto é ecoada pela trilha, que, até então dedicada a ressaltar a tragédia, faz um fade out imediato quando ele instrui outro competidor a procurá-lo em seu escritório. Em contrapartida, há momentos em que o caráter melodramático soa apenas artificial, o que pode ser constatado, por exemplo, quando do nada Adalgisa profere o clichê “o filho errado morreu” ao falar do irmão de Enzo morto na juventude.

Já Penélope Cruz jamais perde o controle de sua composição: encarnando Laura como uma mulher de olhos fundos e expressão que parece sempre combinar a mágoa e a raiva, a atriz consegue tornar verossímeis passagens que poderiam soar apenas ridículas (como ao atirar na direção de Enzo para expressar sua frustração) e estabelece a personagem como uma figura inteligente e imprevisível, sendo fácil compreendermos por que o gerente do banco demonstra tanta apreensão em sua presença. Enquanto isso, Shailene Woodley, mesmo tendo menos oportunidades de explorar Lina, confere a esta uma serenidade (ou estoicismo) notável, o que justifica a postura mais relaxada do protagonista quando em sua companhia. Aliás, Adam Driver oferece uma performance impecável como Enzo: enquadrado em primeiros planos recorrentes que soam como um esforço da câmera em decifrar o que está ocorrendo por trás de sua expressão impassível (quando ele geralmente surge de costas para outros personagens, que assim também são excluídos de seus processos mentais e emocionais), o ator incorpora Ferrari como um homem cuja postura elegante e rígida é uma manifestação da barreira que construiu para manter-se afastado/protegido das tragédias que inevitavelmente o cercam, sendo nítido seu desconforto, por exemplo, diante de um gesto de carinho do filho – e o máximo que ele consegue fazer na maior parte do tempo para expressar seu afeto pelo garoto é acariciar desajeitadamente seus cabelos, mantendo-o a uma distância segura para evitar manifestações mais intensas.

E o fato é que esta autoproteção acaba se revelando essencial, já que sua trajetória profissional é povoada de mortes – algo intrínseco à natureza daquele mundo. Não que Ferrari veja o universo das corridas como algo opressivo ou deprimente; ao contrário, Michael Mann concebe as disputas com uma energia impressionante, buscando equilibrar as imagens típicas de filmes do gênero (com planos-detalhe de mãos mudando marchas e de pés pisando em aceleradores enquanto o chão estremece com a passagem dos carros) com outras que oferecem perspectivas um pouco menos comuns (algo facilitado pelo circuito atípico da Mille Miglia). Ao mesmo tempo, os movimentos constantes da câmera refletem a rapidez com que os pilotos devem pensar e agir, o que é complementado pelos contrazooms ocasionais que distorcem a distância da pista. Para completar, Mann faz um jogo de expectativas brilhante com o espectador ao prepará-lo/desarmá-lo durante um dos momentos-chave da projeção, enfocando – atenção para spoilers - um garotinho que corre na direção da pista apenas para que seu pai o alcance antes que algo terrível aconteça. Quando, então, algo terrível acontece com o irmão que já havíamos esquecido. (E ainda que os efeitos visuais desta sequência não sejam exatamente convincentes, o acidente funciona como elemento dramático; reclamar da execução ali é como assistir aos filmes de ficção B da década de 50 e descartá-los apenas porque os fios que erguem as naves espaciais são visíveis.)

Deixando de funcionar como estudo de personagem apenas porque o protagonista se revela uma figura inescrutável, Ferrari é intrigante precisamente por sugerir como, ao proteger-se da dor que as tragédias em sua vida profissional traziam, Enzo fechou-se também para as alegrias que a vida familiar poderia lhe oferecer.

14 de Março de 2024

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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