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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
01/01/1970 08/03/2024 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Duração do filme
104 minuto(s)

Love Lies Bleeding
Love Lies Bleeding

Dirigido por Rose Glass. Roteiro de Rose Glass e Weronika Tofilska. Com: Kristen Stewart, Katy O´Brian, Dave Franco, Anna Baryshnikov, Jena Malone, Eldon Jones, Matthew Blood-Smyth, Orion Carrington, Tait Fletcher e Ed Harris.

Um dos melhores filmes de 2019, Saint Maud marcou a estreia na direção de longas da britânica Rose Glass ao contar a história de uma enfermeira cuja determinação em salvar a alma de uma paciente terminal resultava em uma narrativa marcada por violência gráfica, incerteza quanto ao grau de subjetividade do que víamos, atmosfera carregada e performances intensas e memoráveis – características também presentes neste seu segundo longa, Love Lies Bleeding, que roteirizou ao lado de Weronika Tofilska.


Ambientado no final da década de 80 (mais especificamente em 1989, já que um personagem cita o efeito do lançamento de Duro de Matar meses antes sobre as visitas a estandes de tiro), o filme abre com planos-detalhe saturados e vibrantes do cotidiano de uma academia de musculação, revelando braços e pernas malhados e os aparelhos que assim os deixaram, até cortar subitamente para uma imagem menos estimulante: a de Lou (Stewart), funcionária do estabelecimento, com a mão enfiada em um vaso sanitário enquanto tenta desentupi-lo. Com expressão pouco amigável, ela só não deixa a cidadezinha em que mora por preocupar-se com a segurança da irmã Beth (Malone), vítima de constantes abusos físicos por parte do marido JJ (Franco). Mantendo-se distante do pai, o perigoso Lou Sr. (Harris), ela finalmente encontra uma razão para se animar quando uma desconhecida entra na academia certa noite: Jackie (O´Brian), que está a caminho de Las Vegas a fim de participar de uma competição de fisiculturismo.

E dizer mais sobre a trama seria um pecado, já que um dos prazeres ao assistir a Love Lies Bleeding reside em ser surpreendido pelos acontecimentos e pelas reações dos personagens a estes.

Competente ao apresentar os habitantes de seu universo com economia, Glass precisa de apenas meia dúzia de planos para estabelecer quem são – isto quando não faz o trabalho com um só, como ao introduzir a figura grotesca vivida por Dave Franco através de um close que cobre a tela com sua expressão animalesca ao atingir o orgasmo. E se por vezes pode surgir a impressão de que a diretora não se importa com sutilezas (basta uma rápida olhada em Beth, com seu olho roxo e o braço imobilizado, para sabermos que apanha do marido), é porque de fato esta não é uma preocupação da obra – e se houvesse qualquer dúvida quanto a isto, bastaria testemunhar o fenômeno visual que é a composição física de Ed Harris para que esta desaparecesse.

Combinando de forma fluida uma abordagem estética naturalista (ainda que inspirada em parte pelos filmes de exploitation da década de 70) com instantes nos quais a estilização absoluta toma conta da tela, a fotografia de Ben Fordesman emprega – sem exageros – filtros vermelhos, câmera lenta, planos holandeses e plongées para evocar a intensidade do que retrata (e Harris é o principal contemplado por algumas destas técnicas). Enquanto isso, a direção de arte de Katie Hickman sintetiza o mundo deprimente, sujo e empobrecido daqueles indivíduos sem perder a oportunidade de usar as cores como signos sutis (como ao contrapor a caminhonete azul de Lou e o tom vermelho associado a seu pai, ilustrando o embate entre estes), o mesmo se aplicando aos figurinos de Olga Mill, que reforçam a ligação que prende Lou a Beth através do azul recorrente no visual desta última, por exemplo. E se a montagem de Mark Towns retrata com agilidade a proximidade cada vez maior entre Lou e Jackie em uma sequência na qual gemas de ovos, cigarros e vidrinhos de anabolizantes se complementam quase romanticamente, a trilha de Clint Mansell arremata o processo com brilhantismo, colaborando com as mudanças de tom da narrativa sem necessariamente ditá-las ao espectador.

Interpretando um dos personagens mais grotescos (e fascinantes) de sua carreira, Ed Harris contrapõe o visual extremo de Lou Sr. aos seus modos relativamente contidos e à sua voz baixa (“relativamente” porque não estaríamos falando de Harris se não explodisse em gritos raivosos aqui e ali), firmando-o como um vilão notável; em comparação, Dave Franco se torna um antagonista bem menos caricatural do que seria habitualmente, já que o padrão estabelecido por seu colega de elenco dita sua abordagem. Já Kristen Stewart, uma das melhores atrizes de sua geração, encarna Lou como uma mulher sempre tensa que parece estar constantemente à procura de algum motivo para explodir com as pessoas ao seu redor, embora acabe sufocando este instinto na maior parte do tempo (o que a torna ainda mais ansiosa). Inteligente tanto nos pequenos detalhes de composição (como ao brincar nervosamente com o lacre de uma lata de cerveja enquanto discute com Jackie) quanto nos elementos mais gerais (como ao adotar uma postura curvada que acentua sua exaustão e sua potencial brutalidade), Stewart ainda demonstra um ótimo timing cômico ao extrair graça de uma única palavra (“não”) no meio de uma das passagens mais tensas da projeção. Fechando o elenco, O´Brian é uma revelação (ao menos para mim, que não a conhecia), exibindo a fisicalidade essencial à Jackie enquanto projeta uma vulnerabilidade emocional que nos leva a torcer por ela – e pelo casal.

Tão explícito sexualmente quanto uma produção saída de Hollywood (mesmo que do sistema indie) poderia ser, Love Lies Bleeding é um ótimo argumento contra a posição moralista daqueles que, lançando um olhar genérico sobre o Cinema, afirmam como cenas de sexo jamais são necessárias em um filme, já que é através da troca de prazeres que aquelas duas mulheres tão machucadas e fechadas para o mundo conseguem descobrir alguma saída.

Contando com um ótimo desenho de som que colabora para situar o longa numa fronteira que flerta com a fantasia ao ajudar a compor a trajetória física e psicológica de Jackie (se ele de fato cruza esta fronteira é algo sujeito a interpretações), Love Lies Bleeding é um exercício de gênero(s) que firma sua realizadora no topo da lista das grandes revelações dos últimos anos.

Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Berlim 2024

20 de Fevereiro de 2024

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Assista também ao vídeo sobre o filme:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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